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Do punk à bitola: como Spencer Jr. virou referência da mixologia no Brasil

Spencer Amereno Jr foi de baixista da banda punk à principal referência entre bartenders - Divulgação
Spencer Amereno Jr foi de baixista da banda punk à principal referência entre bartenders Imagem: Divulgação

Sergio Crusco

Colaboração para Nossa

07/10/2022 04h00

Quem vai ao Guilhotina Bar terá poucas chances de ter um coquetel preparado e servido por Spencer Amereno Jr. "Não pego praça aqui", diz ele, na linguagem de quem trabalha em bares e restaurantes. É possível vê-lo supervisionando o trabalho dos bartenders, conversando com os clientes e, se houver indecisão da parte de alguém, sugerindo drinques.

Engana-se, porém, quem acha que isso é sinal de vida fácil. Há o dedo, o pensamento e o grau de exigência absurdamente elevado de Spencer em todos os líquidos que você provar por ali, tanto no abarrotado salão principal quanto no Carrasco, o pequeno e exclusivo bar nos fundos do imóvel, em que só se entra com reserva.

Aumentando o raio de influência, é possível encontrar o dedo e a inspiração de Spencer em muito do que se faz em mixologia na cidade e no país. É um dos nomes fundamentais na construção da alta coquetelaria brasileira, um dos nossos bartenders mais premiados. Levou o Frank Bar, no extinto Maksoud Plaza, à lista dos 100 melhores do planeta em 2018.

Sua história na barra tem 22 anos, desde que pegou praça na creperia Central das Artes, em São Paulo, por indicação de uma amiga.

Fui trabalhar lá para fazer um troco. Na época eu acreditava que meu futuro estava na música. Fiz parte de várias bandas no final dos anos 90, a mais famosinha foi a Blind Pigs", diz, sobre seu passado de baixista punk.

Spencer Amereno Jr - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Spencer Amereno Jr - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Paixão e obsessão

Em pouco tempo a chavinha virou. O que era para ser um trabalho temporário transformou-se em paixão. Ou mais do que isso, uma obsessão. O dono do lugar, um francês, levava manuais europeus de coquetelaria clássica ao bar e Spencer encarou como desafio a busca pelo Tom Collins ou pelo Singapore Sling perfeitos.

Drink Vezo, do Guilhotina - Divulgação - Divulgação
Drink Vezo, do Guilhotina
Imagem: Divulgação
Drink Raposa, do Guilhotina - Divulgação - Divulgação
Drink Raposa, do Guilhotina
Imagem: Divulgação

"Fui tomado por aquilo. Eu era uma esponja, absorvia tudo o que podia. Com o tempo, passei a ter discernimento sobre o que eram a boa e a má informação", diz, com voz tranquila e pausada, no balcão do Carrasco, onde sorve pequenas doses de bourbon puro, servidas em um copinho de shot por sua mulher, a bartender Cris Negreiros.

Bitolado, como ele costuma se definir, passou a devorar sites de mixologia, a fazer todos os cursos disponíveis, a acompanhar os ensinamentos dos novos gurus da mixologia, como o bartender Gary Regan e o historiador David Wondrich, e a gastar boa parte do salário com livros de coquetelaria clássica, alguns deles fac-símiles de obras do século 19.

Fuego, do bar O Carrasco - Rodolfo Regini - Rodolfo Regini
Fuego, do bar O Carrasco
Imagem: Rodolfo Regini
Collins, do bar O Carrasco - Rodolfo Regini - Rodolfo Regini
Collins, do bar O Carrasco
Imagem: Rodolfo Regini

Naquele comecinho, Spencer já estava em sintonia com a grande revolução que acontecia na coquetelaria mundial na virada do século, tendo Nova York, Londres e Tóquio como pontas de lança de tendências. Quando assumiu a barra do extinto MyNY Bar, em 2012, teve largo espaço para colocar em prática a teoria e as técnicas que estudava.

Daniel Fialdini, dono do MyNY, viajava o mundo pesquisando tendências e trazia o que via para cá. Foi o primeiro bar brasileiro a transformar a coquetelaria brasileira em algo gastronômico, a otimizar aromas, sabores e frescor dos ingredientes, produzidos na própria casa, a se preocupar com a qualidade do gelo."

Ambiente do Myny Bar - Newton Santos / Hype - Newton Santos / Hype
Ambiente do MyNY Bar
Imagem: Newton Santos / Hype

Luta contra o estresse

Guilhotina - Divulgação - Divulgação
Guilhotina
Imagem: Divulgação

Repaginar as cartas de coquetéis e o serviço do Guilhotina na reabertura pós-lockdown foi mais uma empreitada obsessiva de Spencer Jr. Com a casa em obras, dormiu ali dentro algumas noites, no sofá. Testou não apenas as receitas, mas a ergonomia das estações de bar, entendendo sua configuração, estudando movimentos.

Com o bar aberto, enfrentou jornadas de mais de dez horas nos primeiros dias, indo para o balcão a fim de perceber o funcionamento e o clima da casa. Chegava antes de o lugar abrir, saía depois do último cliente. Atento a tudo, queria encontrar o que chama de "zing" — "aquele detalhe especial, que faz a diferença".

Nada muito diferente do que quando liderou o Frank Bar, no extinto Hotel Maksoud Plaza. Cuidava do layout do bar, da contratação, do treinamento, das redes sociais, das compras. Varava noites cortando barras de gelo com serrote, transformando-as em cubos perfeitos para os coquetéis.

Frank Bar, no hotel Maksoud Plaza, que homenageava Frank Sinatra - Rubens Kato/Divulgação - Rubens Kato/Divulgação
Frank Bar, no hotel Maksoud Plaza, que homenageava Frank Sinatra
Imagem: Rubens Kato/Divulgação

"Eu trabalhava muito e acho que isso não faz bem. Estou aprendendo a delegar", diz. Bem mais magro, de aparência rejuvenescida, o bartender de 44 anos hoje resolve o estresse a socos, aplicados contra um saco de pancadas instalado em seu apartamento.

Sem contar com o apoio de um mestre, estabeleceu sua rotina de treino com a lembrança das aulas de kickbox que praticou na adolescência. Fanático por lutas, mistura a técnica a movimentos de karatê, tae kwon do e outras artes marciais que acompanha por vídeos e tutoriais na internet. Autodidata, como sempre.

A rotina de bar é muito louca, estressa física e mentalmente. A gente dorme pouco, come mal e uma hora isso aparece no corpo. Eu precisava de saúde, de ganhar um pouco mais de vida. Tenho um filho e, agora, uma mulher linda, maravilhosa."

Amor e coquetéis na praça

Cris e Spencer conheceram-se há seis anos, quando ela esteve na plateia de um evento de coquetelaria em que ele fazia participação especial. O romance engatou mais tarde, em tempos pandêmicos, quando voltaram a se ver no Rio de Janeiro. Hoje vivem juntos em São Paulo, na companhia de seis gatos.

Durante o lockdown, com os bares fechados, Spencer retornava temporariamente à vida de bicos. Além de fazer lives para marcas de bebidas, aceitou o convite de um bartender carioca para servir coquetéis numa praça em Marechal Deodoro, zona oeste do Rio, bem longe do glamour dos salões.

Chegou a ministrar um workshop de coquetelaria improvisado em uma igreja do bairro, na frente de uma sede dos Alcoólicos Anônimos. Mas não acredita que teria sucesso como educador. "Não tenho jeito pra isso, sou muito tímido."

É de se estranhar que um bartender, acostumado a encarar o público de frente, tenha problemas de timidez. No caso de Spencer, a desenvoltura e o trato com as pessoas também foi um aprendizado. Talvez um dos menos fáceis para ele.

Spencer Amereno Jr - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação
Spencer Amereno Jr - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

"Criei um personagem pra trabalhar como bartender, bem diferente de mim. Sou um cara fechado, chato. No bar, me transformo em um puxa-saco, tento fazer de tudo pra que o cliente se sinta em casa", diz ele, que buscou também nos livros respostas para o dilema. "'Setting the Table', do restaurateur Danny Meyer, de Nova York, é um livro foda para quem quer aprender a se relacionar melhor com os clientes."

A leitura, não apenas a prática física, foi importante para que aprimorasse a performance corporal. Cita o livro "Paparazzi", do bartender esloveno Stanislav Vadrna, como fundamental para quem queira atuar com elegância na barra. "Ele fala de sprezzatura, uma postura, um jeito de se manifestar corporalmente e de manipular os utensílios de bar que inspira confiança no cliente. É tão importante quanto servir um bom coquetel."

Ser paciente também está entre as prioridades profissionais de um bom bartender, ele acredita. Outra tarefa árdua: "Você está no palco, é um psicólogo, precisa saber lidar com todo tipo de comportamento, ainda por cima de pessoas alteradas pelo álcool. Só que essa paciência acaba depois de 20 anos de trabalho".

O momento zen, que ele define como de "simplicidade e amor", e a agressividade descontada no saco de pancada, tem feito Spencer manter a paz em alta conta.

Acho que estou aprendendo a trabalhar de maneira mais inteligente, me desgastando menos. Quero viver, mas não me vejo longe do bar. Acredito que nasci pra isso, não tem escapatória."