Sete Quedas: o herói de tragédia e o destino que você não vai conhecer
Em Guaíra, no extremo oeste do Paraná, é raro quem não conheça João "Mandi" como o herói das Sete Quedas.
Mas o próprio dono do título desconversa quando questionado pela reportagem.
"A turma diz que fui herói, mas foi uma coisa que eu faria por qualquer um. Como eu nadava bem, pulei [no rio] sabendo que ia conseguir fazer tudo", analisa João, 67, em entrevista para Nossa.
Há 40 anos, o Salto de Sete Quedas, que já foi a maior catarata em volume d'água do mundo, desaparecia do mapa para dar lugar ao lago artificial da futura hidrelétrica de Itaipu, empreendimento binacional, entre o Brasil e o Paraguai.
'Visite antes que acabe'
Com o anúncio do fechamento das comportas do Canal de Desvio de Itaipu, que alagaria um dos atrativos mais famosos do Brasil, o governo do Paraná na época começou a divulgar a campanha "Visite antes que acabe", atraindo um número elevado de visitantes.
Consequentemente, as precárias pontes de acesso aos saltos não suportaram o peso das dezenas de pessoas naquelas construções já sem manutenção por conta da morte decretada do atrativo.
E é aí que começa não só a história do herói de Guaíra, mas também daquilo que é considerado o maior crime ambiental do país.
Nasce um herói...
Quando o então operador de usina João Lima Moraes, o Mandi, chegou na subestação da Copel (Companhia Paranaense de Energia), no complexo das Sete Quedas, as notícias já tinham se espalhado e os militares, fechado todas as entradas.
"[Como funcionário] eu tinha acesso fácil ao ponto do acidente e comecei a ver gente pendurada na ponte caindo no rio", conta João sobre aquela manhã de 17 de janeiro de 1982.
Ele então tirou a camisa, saltou no Rio Paraná e nadou contra as violentas águas barrentas até o ponto em que se encontravam os visitantes ilhados.
Eu poderia ter morrido, mas sempre gostei de ajudar. Foi instinto.
Naquele dia, ele foi responsável pelo resgate de seis sobreviventes de uma tragédia que tirou a vida de outros 32 visitantes.
A 25 metros de altura e com outros 37 de comprimento, a ponte pênsil Presidente Roosevelt, com vista para o salto 19, se partiu ao meio com o rompimento de seus cabos de aço sobre um dos pontos mais perigosos do parque, por conta da correnteza e da violência das águas.
Assim como lembra Mandi, apelido em referência a um peixe do Rio Paraná, os sobreviventes eram um rapaz e cinco mulheres (uma delas grávida). Um dos corpos resgatados foi encontrado dias depois em Foz do Iguaçu, a 240 km dali.
Arco-íris era atrativo
Para ele, o sobrepeso teria ocorrido porque o famoso arco-íris de Sete Quedas se formava exatamente sobre a ponte, onde os turistas sempre paravam para fotos, e recebia água das cachoeiras durante todo o dia, comprometendo a madeira da estrutura.
De acordo com os números divulgados na época, mais de 1.500 pessoas ficaram ilhadas por horas, à espera do resgate com barcos infláveis, cordas e cabos de aço com cadeirinha.
Só naquele trágico final de semana, segundo matéria da Folha de S. Paulo, Guaíra havia recebido cerca de 33 ônibus e mais de dois mil turistas.
De acordo com a mesma reportagem, um esquema alternativo de visitas foi estabelecido na mesma semana do acidente, quando turistas podiam ver os saltos a 70 metros de distância, aproximadamente.
O empresário guairense Ney José Neotti, que "praticamente nasceu dentro do Parque de Sete Quedas", tinha na época 23 anos e trabalhava como garçom em um hotel.
"Ficamos muito preocupados porque tínhamos quatro hóspedes que estavam no parque na hora do acidente. Mas por conta de um atraso no café da manhã, eles ainda estavam do lado de cá da ponte", conta Ney.
Ele lembra também que, meses antes do desaparecimento total das quedas, muitos visitantes dormiam até no carro por falta de vagas nos cerca de 15 hotéis disponíveis na época.
"O mundo parou e Guaíra ficou num luto total. Além do grande susto, foi aí que teve início a grande tragédia econômica na cidade. Toda a comunidade dependia daquilo", diz Ney, que começou a trabalhar como guia de turismo de Sete Quedas, aos oito anos de idade.
Mandi chegou a conhecer o presidente
Já João Mandi conta que, com a fama inesperada, foi afastado do trabalho por um tempo e chegou a ficar dois meses viajando pelo Brasil para contar a história do resgate. Até o então presidente brasileiro João Figueiredo visitou Sete Quedas e se encontrou com o novo herói nacional.
Na época, eu virei um garoto propaganda.
Ele só não pôde salvar um dos mais importantes atrativos naturais do Brasil, daqueles que recebiam visitantes dos EUA e até do Japão.
O fim das Sete Quedas
A partir do dia 13 de outubro daquele mesmo ano, o país via o Salto de Sete Quedas ser engolido, em apenas 14 dias, pelas águas que dariam lugar ao lago que represaria o Rio Paraná para a futura Hidrelétrica de Itaipu.
A oito quilômetros do centro de Guaíra, a "maior cachoeira submersa", segundo o Guinness World Records, era treze vezes mais caudalosa que as Cataratas de Vitória, entre a Zâmbia e o Zimbábue, e tinha o dobro de volume de água das Cataratas do Niágara, na fronteira dos Estados Unidos com o Canadá.
"É algo que se deve colocar nas páginas da vergonha da história desse país. Foi como rasgar a oportunidade de outras gerações vivenciarem as Sete Quedas", analisa Gilson Burigo Guimarães, professor do departamento de Geociências da Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Para ele, não foram considerados valores ecológicos, geológicos e culturais, como os últimos remanescentes de guaranis da região.
Do ponto de vista cientifico, a região é importante para a gente entender a evolução da paisagem nos últimos milhões de anos. Mas com o fim de Sete Quedas, alguns registros ficaram comprometidos.
Adeus ao parque
Diz a lenda local que, embora contasse com 19 quedas principais, o atrativo tinha esse nome por conta de um indígena que quis homenagear as sete mais belas da região.
A maior delas tinha cerca de 40 metros de altura e o som produzido pela violência das águas de todo o complexo dava para ouvir no município vizinho de Terra Roxa, a 26 quilômetros dali.
"Na época das chuvas, os saltos roncavam e faziam um barulhão bem feio", descreve João Mandi.
A visita consistia num circuito de 2,5 quilômetros de pontes e passarelas que levavam os turistas a diferentes pontos do parque. Segundo João, "tinha que ficar uns dois dias lá dentro porque tinha queda pra todo lado".
Duas décadas depois da criação do Parque Nacional das Sete Quedas, em maio de 1961, João Figueiredo, o último presidente da ditadura militar brasileira, extinguiu aquela área preservada de 144 mil hectares por conta do alagamento.
Com o fim do parque, em meados de 1981, o IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal) deixou de cobrar ingressos e de controlar o acesso do público.
'Praticamente todo mundo faliu'
Apenas em 1997, a região ganharia outra unidade de conservação do gênero, com o decreto que criava o Parque Nacional de Ilha Grande, entre os Estados do Paraná e Mato Grosso do Sul.
"Foi algo terrível para o meio ambiente e parece que não aprendemos com isso. Vamos caminhar para repetir os mesmos erros, infelizmente", analisa Gilson, que compara Sete Quedas com erros ambientais recentes como a construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu (PA), e mais recentemente a exploração de minério de ferro na Serra do Curral (MG).
Para o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade, em texto publicado em 1982 no Jornal do Brasil, as cachoeiras que causavam arrepio se transformavam nos "sete fantasmas das águas assassinadas por mão do homem".
"Foi um baque muito grande porque a maioria da população vivia daquilo, principalmente o turismo. Praticamente todo mundo faliu, como restaurantes e hotéis", lamenta João, um dos 11 filhos de uma família que, no auge de Sete Quedas, trabalhava informalmente oferecendo serviços para o alto número de turistas.
Submergia não só um dos atrativos brasileiros mais importantes da época, mas também uma cidade inteira que, da noite para o dia, perdeu uma de suas principais fontes de renda.
Guaíra, cidade paranaense que servia de base para os turistas, foi um dos municípios atingidos pela construção da hidrelétrica, iniciada em 1974.
Guaíra hoje
Com o fim do Salto de Sete Quedas, em 1982, a agitada Guaíra viu sua população de 80 mil habitantes ser reduzida a 18 mil, segundo números divulgados à reportagem pela Prefeitura de Guaíra.
Por muitos anos, Guaíra parou. A cidade ficou praticamente falida e virou uma cidade fantasma. O pessoal foi sobrevivendo João Mandi
Para Ney José Neotti, a perda do atrativo foi fatal, econômica e socialmente, para todo o município.
"Num mesmo paralelo tínhamos dois atrativos importantes, Foz de Iguaçu e o Salto de Sete Quedas. Mas todas as atenções foram voltadas para Foz, e Guaíra foi sendo deixada de lado", lamenta o empresário.
E o sentimento de perda permanece até hoje, mesmo em quem sequer viu os saltos.
Nascido no mesmo ano do fim da atração, o professor Cristian Aguazo conta para a reportagem que ainda permanece uma lembrança forte.
"Foi como perder um espaço simbólico. Vi muita gente ir embora porque a cidade tinha acabado", conta Aguazo, que no final do ano que vem deve lançar com a esposa um livro sobre a história de Guaíra.
Atualmente, o destino tem como produtos turísticos a pesca, passeios no Lago de Itaipu e turismo de compras, por conta da proximidade com o Paraguai. Em tempos de águas baixas no rio, dá até para ver pequenas cascatas e o topo de algumas rochas dos antigos saltos.
"Houve, sim, um retorno do turismo, mas perdemos nosso maior atrativo. Apesar do lago ser bonito, nada se compara às belezas das Sete Quedas", lamenta Ney.
Para Cristian, porém, o atrativo ainda precisa de uma homenagem à altura para que a tragédia não seja esquecida pelas próximas gerações.
"O maior crime ambiental do país sequer está nos livros escolares e nem tem um marco que lembre as quedas. Sete Quedas está fadada ao esquecimento", alerta o professor.
"A nossa vida é ficar na beira do rio. A gente dá voltas e sai sempre nele", descreve João Mandi.
Mas, há 40 anos, parece sempre estar faltando algo naquele cenário ribeirinho. E isso herói nenhum vai poder trazer de volta.
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