Maior nome da culinária japonesa no Brasil foi criada entre sushi e feijão
De um lado, um país pequenino sofria os efeitos da superpopulação — faltava chão para plantar e alimentar tanta gente. Do outro, um país novo e gigante, com grandes extensões despovoadas, que precisava desesperadamente de mão de obra após o fim da escravidão. Foi assim, juntando a fome com a vontade de comer, que Japão e Brasil acordaram a primeira política de migração de japoneses para São Paulo.
Eles vieram em massa a partir de 1908, ano em que o primeiro navio japonês, o Kasato Maru, atracou no porto de Santos. Nos anos seguintes, levas e mais levas de imigrantes foram chegando para trabalhar nas lavouras do interior paulista, carregando pouca bagagem e muito medo de recomeçar a vida em terras de hábitos tão diferentes.
Entre eles estavam os avós paternos e maternos da chef Telma Shiraishi, cercados de parentes — ambos os governos estimulavam a migração em família, que reduzia o risco de desistência.
"Eles não vieram em condições tão ruins, meu avô materno chegou a ter uma máquina de beneficiamento de arroz e grãos, mas acabou perdendo tudo e precisou recomeçar do zero. As histórias dos imigrantes são sempre muito sofridas", conta Telma.
As feições tão diferentes, da cor da pele aos olhos puxados, somadas ao jeito de viver, que parecia tão estranho aos brasileiros, não foram bem aceitos por aqui.
O preconceito amarelo foi muito feio. Para completar, durante a Segunda Guerra Mundial viramos inimigos do Brasil. Os imigrantes não podiam falar japonês em público e eram obrigados a esconder seus livros."
Garfo com hashi
Isso ajuda a explicar por que os pais de Telma, Hiroshi e Naomi, já nascidos no Brasil, optaram por criar as filhas longe das próprias raízes. Ela e as duas irmãs foram educadas em português, comendo arroz com feijão. As receitas japonesas até apareciam nos encontros de família comandados pelas avós, mas sempre misturadas aos pratos ocidentais. As combinações podem parecer estranhas, mas faziam sentido para o clã porque resumiam suas trajetórias.
"A gente comia feijão no dia a dia, mas com arroz japonês. Nos fins de semana, podia ter feijoada com sushi, ou churrasco com sashimi. Em todas as refeições, os talheres conviviam com os hashis."
O missoshiru, caldo quente e reconfortante à base de soja fermentada, nunca faltava — fosse qual fosse o cardápio do dia, a tigelinha estava lá, ao lado do prato. "No Japão, cada família tem a própria receita de missoshiru", ela diz.
Havia momentos em que as tradições brasileiras se sobrepunham com força às japonesas. No café da manhã, por exemplo — em vez de fazer o desjejum com gohan, omelete, missoshiru e peixe grelhado, hábito que os avós de Telma trouxeram de lá, seus pais eram do pãozinho com manteiga e do café com leite.
No capítulo sobremesas acontecia o mesmo: vencia o paladar açucarado que a família adquiriu no Brasil. "Lembro que a gente comia muita fruta, mas os bolos e pudins eram brasileiros. Eu não achava a menor graça nos doces japoneses."
Reconexão e prestígio
Quem diria que a menina criada à base de feijão, farofa e pudim de leite, que hoje tem 52 anos, se tornaria Embaixadora para Difusão da Cultura e Culinária Japonesa, honraria concedida pelo próprio governo japonês e inédita entre mulheres? E ainda se tornaria responsável pelos banquetes e recepções do Consulado Geral do Japão, em São Paulo? Só que o caminho foi longo, bem demorado.
Autodidata na cozinha, Telma começou a carreira cozinhando para amigos e transitando por receitas de várias influências. Foi só a partir de 2007, quando o acaso a pôs na sociedade de um novo restaurante paulistano, o Aizomê, que ela resolveu se debruçar sobre a cultura dos seus antepassados.
Mergulhei nos estudos sobre o Japão e descobri que o buraco era bem mais embaixo. Não bastava conhecer as receitas, ingredientes e técnicas, porque a gastronomia japonesa está entremeada pela cultura e pelas tradições. Tive que estudar muita história e geografia para chegar às raízes dessa cultura milenar."
Enquanto se reconectava com sua história e as tradições alimentares de seu povo, Telma foi também se redescobrindo. Deixou para trás o tempo em que se sentia em uma espécie de vácuo, no meio do caminho, nem japonesa nem brasileira.
"Na cozinha, finalmente me entendi como uma junção desses dois lados tão bonitos", resume.
Tradição é herança
Nas duas unidades do Aizomê, uma delas dentro do centro cultural Japan House, a chef traduz essa ideia em pratos que têm sua identidade. Ela admite não ser purista, mas faz questão de honrar a cultura de seus antepassados ao mostrar aos brasileiros que muito daquilo que conhecemos como "comida japonesa" é, na verdade, a versão que os Estados Unidos inventaram e exportaram para o mundo.
"Essa cozinha, com seu cream cheese e seus hot rolls, só se popularizou por aqui através dos americanos. Eu precisava resgatar a verdadeira conexão."
No Aizomê não entra cream cheese. O wasabi que acompanha os sushis é o verdadeiro — não o purê de raiz-forte comum nos rodízios e deliveries. Mas a chef, que acumula uma penca de prêmios, se permite colocar o brasileiríssimo pirarucu e a conserva coreana kimchi no cardápio.
As origens também se misturam na casa que Telma divide com as filhas Juliana, 26 anos, e Livia, 20. "Fiz o contrário do que meus pais fizeram. Criei as duas rodeadas pela cultura japonesa, em escolas geridas pela comunidade, onde aprenderam japonês. Em casa, elas comem de tudo, mas o paladar é claramente inclinado para o oriental."
Quando as Shiraishi se reúnem para fazer churrasco, então, fica difícil determinar para que lado pende a balança. Tem carne bovina, hábito bem brazuca, mas não pode faltar o oniguiri, bolinho de arroz que a família sempre tempera com furikake.
A gente não abre mão, é a carne em uma mão e o oniguiri na outra. Pode não ser a pura cultura japonesa, mas é minha raiz e é assim que conto minha história."
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