Vai ter boldo no seu drinque: Néli Pereira desvenda coquetelaria do Brasil
Se você encostasse hoje a noite no balcão de um bar chamado Brasil, o que pediria? Uma caipirinha? Uma batidinha de coco? Um capeta?
Para Néli Pereira, a pedida poderia bem ser uma garrafada, feita de ervas curtidas em álcool — receita nascida como remédio mas que evoluiu para bebida popular em diversas regiões do país.
Mixologista e pesquisadora da cultura brasileira, ela acaba de lançar "Da Botica ao Boteco" (Companhia de Mesa), livro que busca desvendar a coquetelaria nacional em sua essência.
O trabalho de Néli — nas pesquisas e detrás do balcão do Zebra, seu bar no Centro de São Paulo — mostra como plantas nativas ajudaram a definir o nosso gosto no copo. E como ervas, cascas e raízes brasileiras romperam a fronteira da medicina popular (à qual historicamente estiveram confinadas) "e reluziram como coquetéis 100% nacionais", como explica logo nas primeiras páginas.
Plantas nativas
Jurubeba, catuaba, cumaru, urucum e boldo deram forma e sabor ao que (e como) bebemos. E a pesquisa detalhada que o livro traz — e que começou ainda em 2013 — é uma maneira de mostrar uma cultura de bebidas que vai muito além de obviedades e de clichês.
Durante muito tempo pensou-se que a coquetelaria brasileira era tropicalizada, né? Importamos essa versão colonizada de nós mesmos. É como achar que todo coquetel brasileiro tem que ter manga, guarda-chuvinha, pitaya e outros ingredientes que nem são nossos", explica.
O trabalho de Néli busca justamente "decolonizar" o que conhecemos sobre nossa própria mixologia. "Eu falo em decolonizar, e não necessariamente de descolonizar, porque proponho uma separação da história que nos ensinaram, não uma negação dela", explica.
Um pouco de amargor
O que o livro faz é incorporar a visão da coquetelaria brasileira em um contexto internacional, mostrando, por exemplo, como os bitters e amaros famosos nos drinques italianos também tiveram representantes por aqui.
"Era uma preocupação que eu tinha de mostrar que nós possuímos uma singularidade dentro de um universo maior", ela explica. "
Vocês gostam de bitter, que bom! Mas não precisamos importar raízes amargas para fazê-los. Temos as raízes e a forma de fazer aqui também".
Os balcões dos botecos, ela explica, estão repletos de cachaças curtidas de cascas, raízes, ervas. "Todo mundo chega no bar e pede um amarguinho, né?", aponta.
Para a mixologista, criou-se uma ideia errada que que o paladar brasileiro é doce por conta das batidas, da caipirinha cheia de açúcar. "Não podemos limitar as coisas desse jeito. É a mesma coisa de falar que a comida brasileira é só feijoada ou só a moqueca", exemplifica.
Gastronomia e coquetelaria
Ao contrário da gastronomia, aliás, onde muitos chefs e cozinheiros já começaram a empreender estudos de ingredientes tradicionais, ancestrais e regionais, nada parecido tinha sido feito na coquetelaria. "Ou, pelo menos, não tinha sido registrado", pondera.
Foram anos de levantamentos de documentos, conversas e viagens para entender o que estava por trás do nosso copo. E também muitas experiências. Néli chegou a testar jurubeba infusionada em dez tipos de destilados diferentes para ver como a planta se comportava.
"Foi tudo muito empírico. Nunca ninguém tinha usado jurubeba dessa forma, ninguém tinha se debruçado sobre a catuaba. Então, eu não tinha muita referência, tive que testar e testar", conta. Um trabalho essencialmente de erros e acertos.
Com algumas exceções, Néli se ressente de ter tido pouca troca com cozinheiros durante suas pesquisas.
Os chefs brasileiros se interessaram muito pouco pela coquetelaria brasileira. Se você olhar nos melhores restaurantes que trabalham com comida brasileira, há poucos bons bartenders nestes espaços", afirma.
Ela diz que ainda vê pouca valorização da coquetelaria do país nesses espaços que destacam produtos nativos em seus cardápios, por exemplo. "Me diz, que restaurante você foi recentemente no qual bebeu bons drinques brasileiros?", pergunta. "São pouquíssimos", conclui.
Quanto mais, melhor
A mixologista acredita que a coquetelaria nacional tende a ganhar muito quanto mais os ingredientes locais forem utilizados — seja com frutos nativos em batidas, seja com puxuri ralado sobre um coquetel clássico.
Ela defende que eles devem ser usados como qualquer outro ingrediente e não pelo discurso do "olha, eu coloquei um cumaru aqui, já posso dizer que tenho uma carta autoral de coquetéis brasileiros".
Muita gente diz que [o uso de produtos nativos] é uma modinha. Tudo bem, que seja o Brasil, então, a modinha, não o Peru, os EUA, o México", defende.
"O que não dá é bartender brasileiro só falar de ingrediente nativo quando vai para fora ou recebe colega estrangeiro", aponta.
Ainda sobre "modinhas", diz não ver problema, por exemplo, no fato do gim ter ganhado tamanha projeção no país da cachaça — já são centenas de rótulos produzidos em território nacional.
"Se as pessoas se interessam por um novo jeito de beber, isso é bom. Quando a gente alarga o paladar, o paladar não volta. Mas acho que o mercado de gim já está saturado, né? Já podemos pensar além", defende.
Olhar para a cachaça
Isso significa inclusive olhar com outros olhos para o nosso destilado mais representativo. A cachaça, segundo Néli, ainda passa por muito preconceito por parte dos brasileiros — ainda que esteja ganhando cada vez mais notoriedade lá fora,
As pessoas torcem o nariz pra pagar 300, 400 reais de uma garrafa de cachaça e não torce pra pagar 800, 900 mil de uma garrafa de uísque porque não entende o processo, o estilo da cana, o modo de preparo, o papel do produtor no processo", diz.
Nesse sentido, defende, há ainda um caminho largo — e promissor — para a coquetelaria brasileira se desenvolver. "Conhecemos pouco da nossa tradição de bebidas alcoólicas. Se pensarmos o que se bebia no Brasil lá atrás, temos garrafadas, fermentados, vinhos de fruta, licores, coisas que fazemos desde sempre", enumera.
Mil possibilidades
Há espaço, acredita, para produzirmos bons licores de café — "afinal, somos o maior exportador do mundo" —, bons fermentados de caju, vinhos de frutas. "Há um jeito muito próprio de fazer bebida nesse lugar e que é desse lugar, e a gente está querendo fazer uísque?", instiga.
Para a especialista em bebidas, precisamos se interessar mais em fazer o que é nosso, olhar o que já está sendo feito aqui com mais orgulho e valorização. "A gente tem mil possibilidades, e eu acredito muito no nosso potencial de misturar, de fazer, de deglutir. De mostrar o que é tão nosso", afirma.
Néli diz que se sente um pouco como um Policarpo Quaresma, uma ufanista da cultura popular brasileira que podemos exaltar no copo, nas garrafas e balcões.
Onde puder, eu vou encontrar uma brecha para falar disso. 'Com licença, senhor, tem um minutinho para ouvir a palavra do Brasil?'", ri.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.