Francesa trouxe ao Brasil as paixões do país que 'respira' boa comida
Na França, comida é assunto sério que se aprende em casa, desde muito cedo. Crianças vão para a cozinha quando ainda estão no jardim de infância, participam ativamente (e de verdade) do preparo dos alimentos e, à mesa, comem de tudo — não tem essa história de cardápio especial com pratinho infantil.
Esqueça também aquela atmosfera chique dos restaurantes parisienses dos filmes, onde até os garçons têm nariz empinado. No dia a dia, os franceses, sejam eles adultos ou crianças, têm incorporado o hábito de tirar a mesa e lavar a louça.
Natural, portanto, que a francesa Alexandra Loras tenha estranhado um bocado a cultura alimentar brasileira quando chegou por aqui, em 2012.
Nascida e criada pertinho de Paris, ela cresceu rodeada por uma família aristocrática — o pai, nascido na República da Gâmbia, migrou para a França muito jovem e, lá, se apaixonou por uma francesa de família tradicional. Em casa, todos se envolviam com a cozinha.
"Lembro que a comida era sempre muito fresca. Meu avô ia todos as manhãs ao mercado municipal para comprar os ingredientes da refeição do dia", ela conta.
Entre os rituais que Alexandra não esquece está o de comer, ao menos uma vez por semana, tartar de carne de cavalo para combater a anemia crônica da mãe. As crianças não torciam o nariz para comidas estranhas.
A gente comia de boeuf bourguignon [cozido de carne no vinho] a pernas de rã. Nas viagens de férias, meu avô nos levava para comer escargots com manteiga de alho e salsinha."
Cozinha sem monotonia
Já adulta, formada em marketing e pós-graduada em gestão de mídia, Alexandra tornou-se apresentadora de TV. Mas a vida sofreu uma reviravolta digna de conto de fadas quando ela conheceu o diplomata Damien Loras, na época conselheiro do presidente Nicolas Sarkozy.
Os dois se casaram em 2009 e, três anos depois, Loras foi nomeado cônsul da França em São Paulo, cargo que exerceu por quatro anos.
Sem conhecer muitos detalhes sobre a cultura do país, o casal chegou à cidade cercado por mordomias, incluindo uma chef de cozinha particular — que tinha uma rotina até bem tranquila com os novos patrões. "Meu marido é de Lyon, onde a cultura gastronômica é ainda mais forte.
Ele cozinha muito bem e não deixava a chef fazer nada. Até hoje é assim, dificilmente me deixa cozinhar."
Outro choque foi descobrir que, no Brasil, os ingredientes nem sempre tinham o mesmo sabor. "A gente trouxe o hábito de comer ao menos três variedades de legumes em todas as refeições. Os que comprávamos aqui eram muito bonitos, mas pareciam sem gosto", explica.
O feijão com arroz de todo dia, que fazia parte da dieta dos funcionários da casa consular, também causava estranhamento aos franceses.
Na França, comemos pratos diferentes todo dia, não há uma comida que a gente repita sempre, como fazem aqui. Feijão, só de vez em quando, e no cassoulet."
Também teve surpresa boa — quando fala das frutas brasileiras, Alexandra suspira e confessa ficar com água na boca. Em seu jardim, pés de jabuticaba, romã, limão, laranja, tangerina e amora crescem cercados pelos arranha-céus paulistanos.
"Fiquei viciada em açaí e caju e ando pelas ruas do bairro catando pitangas", conta rindo, com o sotaque carregado nos erres que não a abandona. "Quando faço isso, me sinto a rainha do pedaço."
Aprendiz de gourmand
A rotina alimentar do casal mudou de vez quando o filho Raphael nasceu, 10 anos atrás. Conduzido à cozinha mal tinha saído das fraldas, o menino seguiu a tradição da família francesa. Aprendeu até a manipular a faca para picar legumes, estratégia que a mãe considera certeira para despertar a curiosidade das crianças e educar para uma alimentação saudável.
Fazer panquecas é a especialidade dele. Somos muito amigos do chef Erick Jacquin e, desde muito pequeno, meu filho brinca, dizendo que cozinha melhor do que ele."
Por causa de Raphael, o arroz com feijão passou a frequentar o lar dos Loras no dia a dia. E o costume da fartura de legumes se mantém. Eles aparecem em preparos variados, que é para ninguém ficar entediado — pode ser abobrinha cozida com especiarias ou abóbora refogada na manteiga.
A carne vermelha não dá as caras todo dia, mas sempre tem uma proteína, que pode ser frango, peixe ou camarão. "Comemos pão em todas as refeições, mas nunca repetimos o prato", ela pontua.
Como é comum em casa que tem criança, o calendário semanal também passou a incluir dias especiais, quando todo tipo de comida é permitido. "Temos um jogo em família: o dia de cada um criar o cardápio. De vez em quando, por causa do meu filho, todo mundo come macarrão instantâneo." Mas esses dias são exceções.
Além de comer os mesmos alimentos servidos aos pais, Raphael tem lições constantes de como se portar à mesa — outro valor caro aos franceses. Em vez de ditar regras que soariam chatas, Alexandra e Damien usam um recurso bem mais divertido: se Raphael comete um deslize, como apoiar os cotovelos sobre a mesa ou fazer barulho ao tomar sopa, os pais o imitam brincando.
Conhecer os códigos e saber transitar em vários mundos é fundamental", a mãe fecha questão.
Sem desperdício, novo costume
Desperdício é algo fora do vocabulário dos francesas — de reaproveitar sobras de comida a economizar água e detergente ao lavar louça, tudo faz parte da rotina.
Aprendi com meus avós, que passaram por duas guerras, a guardar tudo. Já que nunca se joga comida fora, a gente prefere cozinhar porções menores."
De pouquinho em pouquinho, Alexandra foi se habituando a traços da culinária brasileira que, antes, pareciam bem estranhos. Acostumada à pâtisserie francesa, que é delicada e pouco doce, ela não entendia a obsessão nacional pelo leite condensado. Brigadeiro, então, chegava a odiar.
"O cacau nunca era de boa qualidade, me pareciam bolas de açúcar. Mas acabei me viciando. Meu paladar não era educado para a cozinha brasileira, só depois de algum tempo morando aqui consegui abrir minha mente", confessa.
Hoje, sempre que sai do Brasil, ela diz que volta louca de vontade de comer pão de queijo e tapioca.
Tradição resiste à distância - e aos novos tempos
Quando o assunto é memória afetiva, aquela lembrança que traz de volta o gostinho de momentos felizes, Alexandra retorna imediatamente para sua França natal. Recorda vivamente da quiche Lorraine que a mãe sempre preparava quando recebia visitas, e da tarte tatin das sobremesas.
Quando quer prepará-las em casa, ela segue receitas em francês através do aplicativo Marmiton, idealizado para mulheres como ela, que se equilibram entre a rotina familiar e uma agenda apertada no trabalho — atualmente, Alexandra é uma palestrante disputada, especializada em temas como liderança feminina e combate ao racismo dentro das empresas.
"Esse aplicativo é genial, porque as receitas são fornecidas por mulheres francesas, geralmente mães que cozinham muito bem, mas também trabalham fora e privilegiam preparos rápidos, fáceis e deliciosos."
A receita de família de
Alexandra Loras
O prato que Alexandra elege como o mais simbólico de todos, aquele que o casal costuma servir aos amigos mais chegados, é outro clássico francês, o blanquette de veau. Na origem, esse cozido rico em temperos é preparado com carne de vitelo, mas Alexandra o adaptou.
"É difícil encontrar vitelo no Brasil e, quando acho, o sabor é diferente. Por isso, prefiro reproduzir a receita com frango." O molho, cremoso e aveludado, tem seu segredinho — um tiquinho de farinha de trigo para engrossar, além de uma gema e suco de limão na hora de finalizar.
No livro 'Em busca do tempo perdido', Marcel Proust, um dos nossos maiores escritores, come uma madeleine e descreve em detalhes as lembranças que ela traz. Essa é a sensação que me provoca o blanquette, é minha madeleine de Proust."
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