Topo

Coentro das bebidas, jerez divide opiniões e arrebata paladares em drinques

Drinque Autoral por Wanderson Lima, do The View Bar SP - Ricardo Dangelo/Divulgação
Drinque Autoral por Wanderson Lima, do The View Bar SP
Imagem: Ricardo Dangelo/Divulgação

Sergio Crusco

Colaboração para Nossa

04/11/2022 04h00

Quando a bartender Alice Guedes matriculou-se no curso da Associação Brasileira de Sommeliers, em São Paulo, tinha a intenção de aprender mais sobre vinhos e entender melhor sua aplicação na coqueteleria. Não esperava que, além de agregar conhecimento ao ofício do bar, fosse viver uma epifania na aula sobre os vinhos fortificados espanhóis de Jerez.

Alice já conhecia alguns drinques clássicos com jerez, como Adonis e Sherry Cobbler, mas estudá-los em detalhes fez com que desvelasse um mundo muito mais vasto e profundo.

"Jerez é um negócio de louco, fiquei totalmente apaixonada. São vinhos versáteis e de grande complexidade, é possível criar coquetéis de perfis muito diferentes com seus vários estilos. O jerez levanta e refina uma receita", diz.

Durante o ano de 2019, fez a lição de casa e provou todos os rótulos que pôde encontrar, fazendo as experiências mixológicas que tornaria públicas após o lockdown, no Fechado Bar, aberto em 2022, em sociedade com o bartender Jean Ponce. As descobertas e a paixão de Alice encontram eco numa tendência já inserida na alta coquetelaria paulistana.

Fechado_ - Divulgação - Divulgação
El Puerto de Santa Maria, do Fechado Bar
Imagem: Divulgação

O coentro das bebidas

A maioria dos bares que se prezam, os que realmente valem a pena visitar, tem coquetéis com jerez na carta. A onda — na verdade, marolinha — está longe de ser um fenômeno avassalador como o da popularidade do gim. Jerez não é dos ingredientes mais baratos e tampouco é um vinho fácil, tem notas de sabor pouco familiares ao paladar brasileiro.

Os estilos de jerez mais básicos, Fino e Manzanilla, são muito, muito secos, zero sensação de açúcar na boca. Salinos, ácidos, com toques de amêndoas, de ervas e um certo tom "estragadinho", fazem muita gente relacionar seu sabor ao de algum remédio esquisito.

Degustação de diferentes tipos de jerez - Getty Images/iStockphoto - Getty Images/iStockphoto
Degustação de diferentes tipos de jerez
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Se o jerez pode parecer estranho para algumas pessoas, é capaz de maravilhar outras ao primeiro gole — divide times, tal qual o coentro na gastronomia.

Há estilos mais encorpados e escuros, como o Oloroso, o Amontillado e o Palo Cortado, em que o caráter de amêndoas e outras nozes é mais evidente. Ganham notas de tabaco, madeira, trufas, frutas secas.

Cream, o primeiro estilo adocicado, mistura características de jerezes mais complexos e, apesar do dulçor, mantém viva a acidez. Pedro Ximénez é o último da fila, denso como licor e indicado a quem gosta de bebidas decididamente doces.

A descoberta do curinga

tan tan - Tati Frison - Tati Frison
Tan Tan Club, do Tan Tan
Imagem: Tati Frison

Agora imagine toda essa riqueza de aromas e sabores a serviço da coquetelaria. Não é de estranhar que mixologistas e amantes do jerez pirem.

Foi o que aconteceu com o bartender Wanderson Lima, do The View Bar, em São Paulo, que despertou para o fortificado espanhol ao acompanhar o Tio Pepe Challenge, campeonato mundial de coquetelaria organizado anualmente pela marca, com etapas no Brasil.

Foi uma descoberta incrível. O jerez ampliou meus horizontes no bar, pois harmoniza com uma série de bebidas, com destilados amadeirados como bourbon, rum ou scotch, com vermurtes tintos e secos, com outros vinhos fortificados, com sucos de frutas. Permite uma infinidade de variações", diz Wanderson, estudioso da coquetelaria clássica.

Jerez puro, no Jiquitaia - Divulgação - Divulgação
Jerez puro, no Jiquitaia
Imagem: Divulgação

Loucos por jerez não têm do que reclamar. Há até uma data internacional para comemorar esses vinhos espanhóis, a Sherry Week. Em 2022, a festa acontece entre 7 e 13 de novembro, envolvendo bares, restaurantes, associações e confrarias, com degustações, aulas, almoços e jantares harmonizados e novidades nas cartas de coquetéis.

O básico do jerez

O jerez é natural da Andaluzia, sudoeste da Espanha, e sua região demarcada como denominação de origem (DO) está dentro do triângulo formado pelas cidades de Jerez de la Frontera, El Puerto de Santa María e Sanlúcar de Barrameda. A atividade vinícola no pedaço data de 1.100 antes de Cristo, quando os fenícios levaram as primeiras mudas de parreira para a região.

Gravura mostra as etapas da produção de Jerez da vinícola de Cerro de Obregon - Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images - Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images
Gravura mostra as etapas da produção de Jerez da vinícola de Cerro de Obregon
Imagem: Universal History Archive/Universal Images Group via Getty Images

O vinho produzido ali virou moda na Europa no século 12, a partir do amor que os ingleses, que o nomearam sherry, pegaram por ele. Paixão que atravessa os tempos. Nos anos 1600, com a família real consumindo jerez a rodo, Shakespeare cita o sherry em várias de suas obras, como "Ricardo III", "Henrique VI", "Sonhos de uma Noite de Verão" e mais algumas.

A produção ancestral de jerez é meio complicadinha, dentro do sistema de soleras e criaderas, método também usado no envelhecimento de alguns destilados. No caso dos estilos Fino e Manzanilla, de perfil similar, o vinho da uva branca Palomino é levado a barricas de carvalho chamadas criaderas, que ficam empilhadas.

De tempos em tempos, os produtores levam o líquido de uma criadera mais alta para outra mais baixa, assim por diante até chegar às soleras, barricas que ficam no solo e guardam o jerez que será engarrafado. As soleras, muitas vezes velhíssimas, já receberam safras e safras de vinhos. Fica tudo misturadão ali e esse é o barato.

Barris de jerez na Bodega Sanchez Romate em Jerez de la Frontera, na Espanha - George Konig/Keystone Features/Getty Images - George Konig/Keystone Features/Getty Images
Barris de jerez na Bodega Sanchez Romate em Jerez de la Frontera, na Espanha
Imagem: George Konig/Keystone Features/Getty Images

Outra particularidade fundamental da produção de jerez é a flor, camada de leveduras naturais das uvas, que se forma sobre o líquido e preserva o vinho da oxidação, mas não completamente (o tal gosto medicinal). A flor (ou velo) é de vital importância para o jerez, pois dá ao vinho várias de suas qualidades sensoriais.

O Jerez Amontillado começa a amadurecer como Fino ou Manzanilla, mas em dado momento do processo, o produtor mata a flor com a adição de álcool e ele passa a envelhecer em barris de carvalho sem a manta de leveduras. Ganha aromas e sabores mais complexos devido à oxidação.

O Oloroso começa seu processo de envelhecimento sem a flor, portanto é o que mais apresenta notas oxidadas e muita expressão de amêndoas e nozes. Palo Cortado, estilo raro e também encorpado, começa a ser vinificado e perde ou não desenvolve a flor. Hoje os produtores usam técnicas para impedir o desenvolvimento das leveduras e alcançar o mesmo resultado.

Corte transversal de barrica de jerez flor - Wikimedia commons - Wikimedia commons
Corte transversal de barrica de jerez flor
Imagem: Wikimedia commons

O estilo Cream mistura vinhos secos como o Oloroso a vinhos doces elaborados com as uvas Pedro Ximénez ou Moscatel. Pedro Ximénez, naturalmente doção, é feito com as uvas de mesmo nome, colhidas muito maduras ou passificadas, para garantir o alto teor de açúcar.

Das uvas da região também nascem outros produtos, como o brandy, destilado geralmente elaborada a partr de vinhos da casta Airén. Vermutes de Jerez, vinhos macerados com botânicos, voltaram a ganhar popularidade com a onda vermuteira que assolou a Espanha nos últimos anos.

O que provar nos bares de São Paulo

Drinque Sherry Cobbler, do The View Bar SP - Ricardo Dangelo/Divulgação - Ricardo Dangelo/Divulgação
Drinque Sherry Cobbler, do The View Bar SP
Imagem: Ricardo Dangelo/Divulgação

Se quiser começar por um coquetel ultraclássico, leve e refrescante, o Sherry Cobbler executado por Wanderson Lima no The View tem tudo isso. O drinque foi descrito pela primeira vez em 1862, pelo bartender Jerry Thomas. Bem seca, a versão paulistana tem Jerez Fino, licor de maraschino, limão, laranja e só um tiquinho de açúcar.

Wanderson também prepara The Algonquin Special (Jerez Fino, Porto Tawny, bitter de laranja), The Affiliate (rum, Fino, licor de cereja, bittera) e um coquetel ainda sem nome de sua autoria, com bourbon, Fino, scotch defumado, licor de amêndoas, vermute tinto e bitters. Os drinques com Jerez não estão na carta do The View, que está em fase de transição, mas basta pedir ao bartender para ter seu desejo realizado.

Drinque Affiliate, do The View Bar SP - Ricardo Dangelo/Divulgação - Ricardo Dangelo/Divulgação
Drinque Affiliate, do The View Bar SP
Imagem: Ricardo Dangelo/Divulgação
The Algonquin Special, do The View Bar SP - Ricardo Dangelo/Divulgação - Ricardo Dangelo/Divulgação
The Algonquin Special, do The View Bar SP
Imagem: Ricardo Dangelo/Divulgação

No Fechado Bar, duas alquimias de Alice Guedes são El Puerto de Santa María (Fino, vermute tinto, bitter de azeitona e azeitona infusionada com Jerez Manzanilla) e Fechado (Fino, aguardente, gim, cítricos, mix de folhas de abacaxi e perfume de uvas Alvarinho).

O bartender Rodolfo Bob, outro maluco do jerez, criou receitas autorais para a carta do Imma Restaurante. Adonis Cubano, bem potente, tem rum enevelhecido, Jerez Oloroso e vermute. Castilla Spritz (Oloroso, vermute de Jerez, espumante e cítricos) é dedicado a quem quer frescor e refrescância. Para a carta do Caledonia Whisky & Co., Bob preparou, no estilo Martini, o Stirred Not Shaken (Fino, gim, single malt turfado, licor de elderflower, solução salina, alcaparrone).

Stirred Not Shaken, do Caledônia - Divulgação - Divulgação
Stirred Not Shaken, do Caledônia
Imagem: Divulgação

O restaurante Jiquitaia foi um dos pioneiros na onda de coquetéis com Jerez na cidade. Atualmente apresenta Sharon (Fino, vermute, Campari) e Flor da Paraíba (cachaça, Jerez Manzanilla, vermute seco, azeitona). A casa também serve cinco rótulos de Jerez em taças.

A carta do Tan Tan Bar também tem espaço para o fortificado, em coquetéis como Dis-A-Pear (Fino, destilado de pera, maracujá, cumaru, clara de ovo, bitter de laranja), Luma Affair (cachaça, Fino, limão, cordial de romã) e Tan Tan Club (Fino, brandy de jerez, vermute tinto, abacaxi, bitter de laranja).

No ibérico Nit Bar de Tapas, do chef Oscar Bosch, o jerez tem lugar de honra em receitas como Portuñol Fashioned (rum, Jerez Pedro Ximénez, licor de café, caramelo salgado) e Pera un Poquito (Manzanilla, saquê, vodca, pera, manjericão).

Me Va, outro endereço espanhol, apresenta o Bramble con Jerez (gim, Pedro Ximénez, siciliano, xarope de amora), Jerez Tonic (vodca, Pedro Ximénez, xarope de caramelo, limão, tônica), Te Quiero (scotch, Oloroso, xarope de demerara, bitters) e várias outras receitas à base do fortificado.

No Trinca Bar, o bartender Alexandre Bussab foi radical. "Quis sentir a explosão do bagulho no nariz e no paladar", diz. Criou o Jerez Jerez Jerez com os estilos Fino e Oloroso, mais vermute de jerez e vermute seco. No japonês Imakay, Kevin Cavalcante prepara o Sanlúcar, com Fino, brandy, aperitivo rosado e mix de bitters, que estreia na nova carta do restaurante durante a Sherry Week.

Adonis, do Le Jazz Petit  - Lucas Terribili/Divulgação - Lucas Terribili/Divulgação
Adonis, do Le Jazz Petit
Imagem: Lucas Terribili/Divulgação

Pipocando em várias cartas da cidade, é possível encontrar drinques clássicos com jerez como o Bamboo (em versões com vermute seco ou tinto, Fino, bitter de laranja) e o Adonis (Oloroso, vermute tinto, bitters), presentes no Imma e no Le Jazz Petit, respectivamente. No Bottega 21, o bartender Michel Felicio prepara o Tuxedo nº 4 (gim, Fino, bitter de laranja, perfume de siciliano).

Outros clássicos também são repaginados com o jerez. No Negroni Jerez bolado por Oscar Bosch para o Nit, o fortificado se intromete na mistura de gim, vermute e Campari. A receita ganhou versão engarrafada da APTK Spirits.

Tuxedo nº 4, do Bottega 21 - Amanda Francelino/Divulgação - Amanda Francelino/Divulgação
Tuxedo nº 4, do Bottega 21
Imagem: Amanda Francelino/Divulgação
Huevos - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Huevos de oro
Imagem: Reprodução/Instagram

Por fim, se você quer passear por vários estilos de jerez puro, o lugar é Huevos de Oro, bar de tapas das sommelières Daniela Bravin e Cássia Campos. Devotadas à causa, elas têm mais de 20 rótulos de todos os estilos, servidos em taça, e sugerem harmonizações com os vários petiscos: camarões ao alho, mexilhões, croquetas, morcilla, pão com tomate e demais espanholices. Os vinhos doces podem ser provados com crema catalana e churros.