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Espanhóis de coração e estômago: paella 'caldosa' une família catalã em SP

O casal Ana e Angel prepara com os filhos Nádia e Raul sua receita de família: herança espanhola - Fernando Moraes/UOL
O casal Ana e Angel prepara com os filhos Nádia e Raul sua receita de família: herança espanhola
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

16/11/2022 04h00

Nas prateleiras da lojinha, em uma rua famosa do Jardim Paulista, embutidos coloridos pela páprica e nomes como chistorra, sobrasada, morcilla, butifarra e secallona não deixam dúvida de que se trata de um endereço tipicamente espanhol. O nome na tabuleta confirma o sotaque: Pirineus Embutidos Artesanales.

Tão gostoso quando entrar ali e sentir o perfume dos condimentos é sentar para ouvir a história da família que conduz o negócio desde 1958. Mas, para isso, é preciso voltar bastante no tempo — e dividir a trajetória em capítulos.

Os Ribas deixam a Espanha

Setenta anos já se passaram e o espanhol Angel Ribas, de 74 anos, não esquece as sensações daquela viagem.

O navio Provence, que trazia sua família para São Paulo, levou quase um mês para cruzar o Oceano Atlântico. Confortavelmente instalado em um camarote, que dividia com os pais o irmão ainda bebê, Angel era um meninote de calças curtas e se impressionava com os enjoos frequentes da mãe, Rosalia.

Rosalia e Rosendo, pais do Angel Ribas, que chegou de navio ao Brasil há 70 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rosalia e Rosendo, pais do Angel Ribas, que chegou de navio ao Brasil há 70 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Também ficou gravada na memória do garoto a chegada ao porto de Santos, onde o tio José os esperava em um Nash, carrão norte-americano estilo banheira que fazia sucesso naquele outubro de 1952.

Nada dessa história lembra a saga dos imigrantes espanhóis que desembarcaram no Brasil, fugindo da pobreza, entre o fim do século 19 e o começo do 20. O pai de Angel, Rosendo, já era um próspero empreiteiro quando decidiu deixar Lloret de Mar, cidadezinha praiana a 1 hora de Barcelona — e viajou com 3 mil pesetas no bolso, pé de meia suficiente para recomeçar a vida sem apertos.

Casa da Familia Ribas em Caldes de Malavella, na Espanha - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Casa da Família Ribas em Caldes de Malavella, na Espanha
Imagem: Arquivo pessoal

Meu pai tinha origem muito humilde, começou como pedreiro, mas no pós-guerra já era sócio de uma empresa que construía casas. Ele só veio para o Brasil porque havia prometido ao irmão, que tinha vindo para cá quatro anos antes", conta Angel.

Em São Paulo, Rosendo conseguiu um bom emprego em um loteamento que começava a tomar forma no Guarujá — o hoje famoso Praia do Iporanga — e para lá se mudou com a família. Na única construção do lugar, os Ribas viviam sem eletricidade, cercados pelo mato e pela praia, equipados com uma geladeira a gás. Os suprimentos vinham de barco, pelo Canal de Bertioga.

"A gente vivia de peixe, os pescadores de uma colônia vizinha levavam", conta Angel, que morou lá até os 12 anos.

Família Ribas em Iporanga: 'Vivia de peixe' - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Família Ribas em Iporanga: 'Vivia de peixe'
Imagem: Arquivo pessoal
Casa da família no Iporanga, no Guarujá: cercados pelo mato e a praia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Casa da família no Iporanga, no Guarujá: cercados pelo mato e a praia
Imagem: Arquivo pessoal

Habituado aos frutos do mar que frequentam assiduamente a mesa catalã, Rosendo mal podia acreditar na fartura de mariscos ao seu redor. "Ele olhava as pedras cheias de conchas e se sentia no paraíso, mas os caiçaras sequer sabiam que eram comestíveis. Aprenderam com meu pai."

Angel lembra de começar o dia com uma fatia de pão molhado no vinho com açúcar. "Ou então minha mãe pegava um ovo no galinheiro e a gente comia cru, com uma tacinha de vinho doce", confessa.

Os Serrano também cruzam o oceano

Embarque no navio Corrientes, que trouxe a Família Serrano ao Brasil  - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Embarque no navio Corrientes, que trouxe a Família Serrano ao Brasil
Imagem: Arquivo pessoal

Quase simultaneamente, outra família de imigrantes espanhóis dava início à aventura de começar a vida em São Paulo. Salvador Serrano e a mulher, Dolores, haviam perdido seus empregos em fábricas de Barcelona e buscaram, no novo mundo, oportunidades melhores para criar o casal de filhos pequenos.

Ana Maria, que hoje tem 73 anos, também tinha 4 quando a família desembarcou em Santos, exatamente 1 ano após a chegada de Angel. E as coincidências não param por aí — a família também foi morar no Guarujá. Salvador tornou-se responsável pela manutenção elétrica do elegante Grand Hôtel La Plage, fundado em 1893, enquanto Dolores, exímia costureira, trabalhava na butique do hotel.

O casal vivia cercado de luxo, conhecia membros da alta sociedade paulistana e, pela simpatia, conquistava amigos importantes. Mas, em casa, prevaleciam os hábitos corriqueiros trazidos da Espanha.

Família Serrano na praia de Pitangueiras, no Guarujá - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Família Serrano na praia de Pitangueiras, no Guarujá
Imagem: Arquivo pessoal

"Como meus pais tinham passado por muitas dificuldades, nossos costumes à mesa eram bem simples. Minha mãe cozinhava muito bem e copiava receitas da coleção 'Bom Apetite'. A gente comia muitos grãos, cozidos que sempre levavam batata e vagem, muito grão-de-bico e lentilha, que eu detestava", diz Ana Maria.

Tradições alimentares trazidas de longe foram se misturando às adquiridas na nova terra. Ana Maria molhava o pão no café, como os brasileiros, só que o leite não vinha da vaca, mas da latinha.

Na Espanha, durante a guerra, tudo era adoçado com leite condensado. Fomos criados assim e só perdi o hábito quando fiquei adulta e virei mãe", ela conta.

Não é difícil concluir que os caminhos das duas famílias espanholas se cruzaram muitas vezes naquela Guarujá chique dos anos 1950 e 1960 — até que, em 1972, Angel e Ana Maria trocaram alianças, ele como engenheiro formado, ela funcionária de carreira do consulado espanhol em São Paulo.

O casal Ana e Angel Ribas, na década de 1970 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O casal Ana e Angel Ribas, na década de 1970
Imagem: Arquivo pessoal

Nesse ponto, porém, é preciso fazer uma pausa na trajetória dos dois para contar a história de mais um personagem.

Nasce uma salumeria em São Paulo

Lembra do José, aquele que foi buscar os Ribas no porto em seu carrão? Enquanto seu irmão trabalhava no Guarujá, ele seguia na capital paulista e, sem saber, começava a mudar o destino de toda a família. Experiente na produção de embutidos, ofício que aprendeu na Espanha, ele havia trabalhado no frigorífico das Indústrias Reunidas Matarazzo e, em 1958, fundou a Pirineus Embutidos Artesanales.

A fabriqueta com loja ocupava um imóvel na Lapa e logo fez sucesso entre conterrâneos, que sentiam falta dos condimentos da terra natal.

José, João e Rosendo Ribas - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
José, João e Rosendo Ribas
Imagem: Arquivo pessoal

Rosendo nunca chegou a trabalhar com o irmão — ele até inaugurou uma salumeria em Santos, também especializada em embutidos espanhóis, mas deu certo mesmo na carreira de construtor. Já seu primogênito, Angel, entrou no negócio sem querer, só para ajudar o tio, e nunca mais saiu.

"Eu cuidava dele e sempre acabava mexendo a massa da morcilla no tacho", conta o sobrinho, que acabou herdando a Pirineus — hoje uma fábrica bem montada no bairro de Santo Amaro, zona Sul de São Paulo, sob o comando de seus filhos, Nádia e Raul.

Entre picadinho e chorizo

Ana e Angel na cozinha com os filhos Nádia e Raul: nova geração, antigos sabores espanhóis - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Ana e Angel na cozinha com os filhos Nádia e Raul: nova geração, antigos sabores espanhóis
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Aos 42 e 45 anos, Nádia e Raul Ribas são brasileiros de nascimento, mas é o sangue duplamente espanhol que fala mais alto quando se sentam à mesa. Pudera.

Trabalhei fora a vida toda e tive duas empregadas para me ajudar: a Carmen, espanhola, e a Madalena, mineira. Meus filhos comiam essa mistura. Tinha arroz com feijão, picadinho e estrogonofe, mas também chorizo, carne estufada com embutidos, costelinha com grão-de-bico e muitos grãos com pimentão vermelho", conta Ana Maria.

Nas festas e encontros de família, a paella não faltava — e era preparada ao ar livre, como é usual na Espanha. Nádia lembra que a enorme panela de fundo redondo e laterais baixinhas era apoiada sobre uma churrasqueira, no corredor ao lado da casa da avó.

A técnica tradicional familiar de fazer a paella, ao ar livre - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A técnica tradicional familiar de fazer a paella, ao ar livre
Imagem: Arquivo pessoal

Levava arroz brasileiro mesmo, já que o tipo bomba espanhol não chegava ao mercado nacional — mais gorducho e com maior capacidade para absorver líquidos, ele é uma espécie de primo do arroz italiano para risoto. "Como crescemos comendo paella com arroz comum, demoramos a nos acostumar ao bomba", confessa Ana Maria.

Paella-estrela

Família reunida no preparo da paella: mais caldosa, ela ganhou o apelido de arroz da yaya, que significa vovó em espanhol - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Família reunida no preparo da paella: mais caldosa, ela ganhou o apelido de arroz da yaya, que significa vovó em espanhol
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Como seu pai não gostava da paella seca, sem caldo, a família se habituou a uma receita bem molhada que, até hoje, é a estrela do almoço quando todos se reúnem. O prato já faz sucesso até entre a quarta geração — Joaquim, 10, e Rita, 7 anos, filhos de Raul, apelidaram a receita de arroz da yaya, que significa vovó em espanhol.

O segredo, entrega Ana Maria, está no preparo do caldo de peixe onde se cozinha o arroz — é o principal ingrediente da receita e deve ser preparado com antecedência.

Uso a cabeça e a espinha de um ou dois peixes, dependendo do tamanho, as cabeças e cascas dos camarões, cebola, cenoura, alho-poró, louro, azeite e um pouco de sal, tudo fervido em água", ela conta.

Tudo bem se faltar algum ingrediente para a paella. Vale usar frango, carne suína, linguiça, polvo, mariscos... "Em sua origem, a paella é um meio de usar o que está à mão. No campo, a vagem e outros legumes são elementares, e era hábito caçar um coelho na hora do preparo. Os peixes e frutos do mar só entram no litoral", ela ensina.

Deslize a galeria abaixo e veja o festivo preparo do prato e, no final da reportagem, a receita completa:

Na Espanha, emenda Ana Maria, paella não é um cardápio glamoroso. É prato rápido e fácil de fazer, bom para reunir os amigos e a família ao redor da mesa, sem ter muito trabalho.

Na verdade, nem falamos que vamos fazer paella. Dizemos apenas que vamos fazer um arroz."

Simples assim.

Receita de arroz caldoso
da Yaya