João Carlos Martins volta ao Carnegie Hall 60 anos após estreia: 'Milagre'
São 19 horas de uma noite de 3 graus em Nova York quando o piscar das luzes da sala de concertos anuncia para a plateia que o show está prestes a começar. O silêncio que precede o primeiro acorde é cortado por um mix de aplausos, ovações e lágrimas quando o maestro João Carlos Martins entra no palco do Carnegie Hall, a legendária casa de shows na Big Apple.
A quebra de protocolo, que mandaria guardar os aplausos apenas para depois, é justificada por toda a carga de emoção e significado deste momento histórico: é o reencontro do maestro paulistano com este palco, na comemoração dos 60 anos de sua estreia no Carnegie Hall.
De certa forma, é também um reencontro do público norte-americano com o João Carlos Martins pianista. Pela primeira vez eles puderam ver e ouvir ao vivo novamente o dedilhar do teclado. Depois de mais de duas décadas sem tocar com os dez dedos por conta da distonia focal, doença rara que afeta o movimento das mãos, com a ajuda de uma luva biônica ele mostrou à plateia quase lotada porque foi chamado pela revista New Yorker um 'herói da música'.
Considerado um dos maiores intérpretes de Johann Sebastian Bach do século 20, na primeira parte do concerto Martins regeu a NOVUS NY, orquestra de música contemporânea da Trinity Wall Street, em três peças do compositor alemão.
Cantigas de roda made in Brazil
A segunda parte foi uma verdadeira homenagem ao Brasil, incluindo as "Bachianas Brasileiras", de Heitor Villa-Lobos, e a obra "Portais Brasileiros Número 2", criada pelo pianista e compositor André Mehmari — a quem o maestro chamou de "o próximo Villa-Lobos" na abertura deste concerto no Carnegie Hall.
Durante esta música, os brasileiros na plateia — e eram muitos, entre fãs e convidados — cantarolaram, baixinho ou mentalmente, algumas das principais cantigas tradicionais brasileiras — de "Boi da Cara Preta" e "Escravos de Jó a "O Cravo Brigou com a Rosa".
"Incluí-las foi um pedido do maestro, que me deixou livre para escolher as canções e fazer essa 'brincadeira', interpolando os temas e criando uma composição única", contou André Mehmari a Nossa após o espetáculo.
Foi um momento inesquecível para mim por vários motivos. Estou muito agradecido por ouvir minha música ser tocada numa sala legendária como o Carnegie Hall, e regida por João Carlos Martins em um programa que tinha Villa-Lobos e Bach" André Mehmari
Hora da emoção
O maestro deixou para o gran finalle o momento mais esperado da noite. Com a luva biônica na mão direita e a esquerda sem o aparato — ele as usou em ambas durante a regência da NOVUS NY —, Martins executou três peças ao piano, incluindo uma composição que tocou há seis décadas em sua estreia no Carnegie Hall, em 1962, aos 21 anos.
A minha luta na vida é procurar levar emoção e perfeccionismo para o público. Eu tenho certeza de que o concerto chegou pertíssimo do perfeccionismo e totalmente com a emoção" João Carlos Martins
Do Brasil a NY só para ver o concerto
De fato, era emoção pura a estampada no rosto da empresária paulistana Elisa Vocci, de 53 anos. Sentada na primeira fileira da sala de concertos e vestindo uma camiseta com a frase "A música venceu" — retirada do samba-enredo da escola de samba Vai-Vai, campeã do Carnaval de São Paulo em 2011 com a homenagem a João Carlos Martins — ela realizava o sonho de ver seu maior (e único) ídolo tocando no Carnegie Hall.
Elisa fez de tudo para não perder essa chance. No exato dia que soube da apresentação em Nova York, há dois meses, ela e o marido, Douglas Vocci, compraram as passagens desde São Paulo e garantiram as poltronas na cara com o palco, onde "deu até para ouvir a respiração dele".
"Eu tocava piano quando era criança e desde essa época sou simplesmente apaixonada por ele e acompanho toda a sua trajetória. O maestro fez parte não apenas da minha infância, mas da minha formação como pessoa", conta Elisa.
Ele é um exemplo de vida para qualquer pessoa. Com tudo o que passou desde o começo, nunca desistiu, sempre pensando que um dia ia melhorar. Se tivesse que o resumir em uma palavra, seria: inspiração" Elisa Vocci
Uma história de superação
A noite de João Carlos Martins no Carnegie Hall mostrou que ele é, como já foi chamado, "um milagre" — ainda mais extraordinário do que foi possível ver em suas duas horas no palco. Os 82 anos de Martins são a prova de que só é possível acreditar em milagres quando a paixão e a determinação são igualmente inexplicáveis pelas leis naturais. Não à toa, sua vida foi tema de filmes e virou o samba-enredo da Vai-Vai em 2011.
A vontade de tocar piano nasceu antes dele. O músico, que aprendeu os primeiros acordes aos 8 anos, comungava com o pai o fascínio pelo instrumento. Seu pai, português que emigrou de Braga para São Paulo, queria ser pianista profissional desde criança, mas teve que abdicar do sonho depois de um acidente na gráfica onde trabalhava ter decepado parte da sua mão. O desejo então passou para a geração seguinte — João e o irmão José Eduardo são pianistas.
Apesar da pouca idade, a ascensão de João diante das teclas o levou para tocar junto das principais orquestras do mundo em um crescendo que nada teve de gradual. Infelizmente, na mesma velocidade, vieram os empecilhos que tentaram afastá-lo do instrumento. Ainda na adolescência, ele começou a sofrer com movimentos involuntários nas mãos causados por distonia focal, uma doença rara e incurável que afeta o sistema nervoso central.
Aos 26 anos, a poucos metros do Carnegie Hall, João teve um acidente jogando futebol no Central Park e rompeu o nervo ulnar, responsável pelo controle da sensibilidade e dos movimentos da mão e do antebraço. Em um mês, alguns de seus dedos se atrofiaram, o que o obrigou a tocar por algum tempo com dedeiras de aço que, não raras vezes, deixavam rastros de sangue nas teclas após suas apresentações.
Em seguida, em decorrência das 12 horas diárias de prática, veio a lesão por esforço repetitivo (LER). Depois, um assalto na Bulgária lhe provocou uma lesão cerebral. Mais tarde, o aparecimento de um tumor.
Por décadas, ele esteve preso em um compasso desarmônico e repetitivo de dor, fisioterapia, prognósticos pessimistas e cirurgias (24 no total), que, entre outras coisas, cortaram a ligação entre o cérebro e a mão direita.
Mesmo em momentos em que fez turnês tocando com apenas uma das mãos ou que precisou decorar as partituras, porque não conseguia passar as páginas durante os concertos, a obsessão de Martins pela música se mostrou maior que a falta de gentileza de seu destino. Ao longo das décadas, ele se despediu do piano algumas vezes. E, nesses intervalos, estudou regência, fundou a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-São Paulo, ensinou música clássica a jovens de baixa renda e ajudou a democratizar o gênero.
Seu reencontro com o piano, inclusive, só aconteceu porque Martins levou Beethoven, Brahms, Tchaikovsky, Vivaldi e outros tantos nomes Brasil afora. Em 2019, o designer industrial Ubiratan Bizarro Costa, de Sumaré (SP), se emocionou com a despedida de João dos palcos e, assistindo aos vídeos do pianista, desenvolveu luvas que emulam a movimentação natural das mãos.
Ao final de um concerto na cidade do interior paulista, Costa entregou um protótipo ao músico. Os dois trabalharam juntos ajustando a invenção até chegarem a um modelo (a sétima tentativa) de fibra de carbono revestida de neoprene com hastes de aço maleável nos dedos que funcionam como molas que levantam os dedos.
Antes das luvas biônicas, Martins tocava só com dois dedos. Com o artefato ele pôs os 10 dedos no teclado pela primeira vez em 22 anos. Acidentes fazem parte da partitura e, no caso da vida de João, foram esses altos e baixos que tornaram sua carreira um espetáculo para ser aplaudido de pé.
* O jornalista viajou a convite da Delta Airlines, patrocinadora do evento.
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