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Sopa de queijo da 'abuela' resgata raízes de mexicano que rodou o mundo

O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina cozinham o caldo de queso - Fernando Moraes/UOL
O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina cozinham o caldo de queso
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

23/11/2022 04h00

Tacos e burritos, tequila, caveiras coloridas que decoram as festas do Día de los Muertos — esses são os elementos da cultura mexicana mais famosos entre brasileiros.

Nosso parco conhecimento em relação a esse país tão cheio de histórias e tradições talvez se deva ao fato de que o Brasil nunca recebeu grandes levas de imigrantes mexicanos, como aconteceu com os italianos, japoneses, libaneses ou espanhóis. Eles chegaram recentemente, a partir do finzinho do século 20, quase sempre em função do trabalho — segundo dados do governo do México, pouco mais de 2 mil mexicanos viviam entre nós em 2020.

Hugo Delgado, 53, é um deles. Nascido no estado de Sonora, norte do país, coladinho à fronteira com os Estados Unidos, ele chegou em São Paulo, em 1999, como executivo de uma multinacional. Nunca mais voltou. Encantou-se com o dinamismo da capital e o jeito cosmopolita dos paulistanos.

"Sou uma flor de asfalto, gosto de cidades grandes. Já tinha morado em Buenos Aires, Pequim, Hong Kong, Paris e Londres. Em 1999, São Paulo, pelo menos na bolha onde eu morava, já era um lugar especialmente aberto e tolerante, algo importante para um homem declaradamente gay que sempre foi transparente."

O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Desde então, Hugo é uma espécie de cônsul informal do México em São Paulo. Muitos paulistanos que só conheciam a texmex — gastronomia mexicana transformada pelos americanos do Texas — foram apresentados às receitas tradicionais nos jantares que ele passou a oferecer aos amigos.

Apaixonado pela arte de receber, foi caprichando cada vez mais, transformando esses encontros íntimos em disputados eventos de alta gastronomia.

Eu acordava às 5h da manhã para preparar cardápios de oito tempos. Fazia a lista de compras no Excel, buscava os ingredientes, colocava uma salsa para tocar e, tomando mezcal, cozinhava até a noite. A sobremesa saía lá pelas 3h da manhã", lembra.

O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina cozinham o caldo de queso - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
O mexicano Hugo Delgado e seu marido Zedy Santina cozinham o caldo de queso
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Não demorou para que sua sala ficasse pequena — e Hugo acabou abrindo mão da carreira executiva em caráter definitivo, para viver da cozinha.

Primeiro fundou o Obá, em 2005, cujo menu se dividia entre pratos mexicanos, tailandeses e brasileiros. "Eu e meus sócios achamos que só a cozinha mexicana não sustentaria a casa. O paulistano não é tão cosmopolita quando se trata de comida, tem medo de provar novidades. De fato, o que a gente mais vendia era moqueca e caipirinha", conta.

Em 2017, o Obá foi vendido. Hoje, Hugo se dedica 100% à Taquería La Sabrosa, em funcionamento desde 2014 — no ambiente informal, ele serve refeições rápidas "mex-mex", ou seja, sem sotaque texano.

Familia "internacional"

Os avós maternos de Hugo no dia do seu casamento na Cidade do México - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os avós maternos de Hugo no dia do seu casamento na Cidade do México
Imagem: Arquivo pessoal

A relação entre Hugo e a culinária de seu país, hoje um caso de amor apaixonado, já foi mais distante. Nascido em uma família globalizada, de alto poder aquisitivo, o garoto cresceu em uma casa aberta a influências do mundo.

O avô materno, Federico, deixou a pobreza para trás quando se escondeu em um trem para estudar medicina na Cidade do México. Tornou-se um ortopedista de renome, de carreira internacional.

"Ele fez residência em Nova York, deu aulas em Israel e sempre amou aprender idiomas. Era ateu, gostava de usar os talheres certos à mesa, de beber bons vinhos e, assim, educou os filhos. Aos 16 anos, minha mãe foi estudar em Los Angeles e, aos 18, já tomava cerveja na garrafa, algo incomum na época", conta Hugo.

A família paterna não ficava atrás. Proprietário de um curtume, o avô Daniel era um empresário festeiro da Cidade do México, que também fez questão que os filhos estudassem fora do país. "Meu pai, Hugo, cursou a Escola de Hotelaria de Lausanne, na Suíça, e na volta passou a trabalhar em grandes hotéis mexicanos. Em um deles, conheceu minha mãe, Luz de Lourdes."

Em casa, Hugo e a irmã, Claudia, tinham o mundo todo à mesa. Nos almoços em família, ritual diário do qual seus pais não abriam mão, o cardápio era sempre uma surpresa. Ele não esquece como era gostoso chegar da escola e correr para o fogão, para descobrir o que a mãe tinha preparado no dia.

Ela fazia comida chinesa, italiana, francesa, tailandesa... A mesa era sempre bonita, bem posta, com todos os talheres. Tinha entrada, prato principal e fruta na sobremesa."

Os pais de Hugo em Miami nos anos 70 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os pais de Hugo em Miami nos anos 70
Imagem: Arquivo pessoal
Os pais de Hugo visitando o Rio nos anos 70 - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os pais de Hugo visitando o Rio nos anos 70
Imagem: Arquivo pessoal

Jantares só começavam depois que seus pais tomassem um aperitivo juntos — quase sempre tequila, enquanto as crianças acompanhavam com chá de hibisco. A TV nunca estava ligada e os convidados eram frequentes. Podiam ser autoridades, atrizes, cantores, príncipes, astronautas. Hugo, encantado com tudo aquilo, tinha permissão para ficar na sala com os adultos e participar das conversas.

"Na minha casa, nunca houve mesas separadas para adultos e crianças", diz. O piano de cauda e o violão estavam sempre à disposição de quem quisesse deixar a noite ainda mais animada.

A tradição como herança

Naquele tempo, o único contato de Hugo com a cozinha tradicional mexicana vinha por intermédio da avó materna, Idolina, que morava na casa ao lado. Atravessar a portinhola escondida no muro era garantia de sentir o perfume dos chiles, das pamonhas e das tortillas de trigo.

Ela mantinha o fogão aceso 24 horas por dia. Enquanto a cozinha da minha casa era ordem e civilização, a da minha avó tinha geladeira cheia de sobras, panelas enormes e pessoas entrando e saindo o tempo todo."

A mãe de Hugo com sua 'abuelita' em 1945 em Nova York - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A mãe de Hugo com sua 'abuelita' em 1945 em Nova York
Imagem: Arquivo pessoal

A intimidade precoce com tantas culturas gastronômicas fez de Hugo um homem sem tanto apego às raízes. Pelos países onde estudou e trabalhou, gostava de cozinhar e receber — mas abria-se para influências do mundo todo, como era hábito na casa dos pais.

"Nunca fazia comida mexicana. Acho que era por insegurança, pois sabia que minha avó era muito melhor", confessa.

Ele precisou chegar ao outro lado do mundo para se reconectar às origens e colocá-las dentro das panelas. A porta de entrada foi um jantar para amigos de trabalho, em Pequim, no qual serviu um dos principais pratos típicos de seu país: chiles en nogada. Os pimentões recheados com carne, sob molho cremoso de nozes e sementes de romã, reúnem as cores da bandeira mexicana, verde, branco e vermelho.

"Não foi fácil conseguir os ingredientes e as pessoas chegaram sem esperar muito, mas foi uma sensação. Anos depois, soube que meus jantares viraram acontecimentos em Pequim, que ninguém queria perder."

Do hábito de ter a casa sempre cheia, Hugo não abre mão, assim como do repertório mexicano autêntico. O que mudou, com o passar do tempo, foi a disposição para ter tanta gente à mesa. No apartamento de 70 m² que divide com o marido, o arquiteto Zedy Santina, os jantares já não reúnem mais do que seis pessoas ao redor da mesa.

O capricho para arrumar a mesa é o mesmo — ainda que os dois estejam sozinhos, no dia a dia -, mas o clima ficou mais leve, informal.

Antes, cozinhava para impressionar. Hoje já sei quem sou, não preciso provar nada a ninguém. Acho mais importante o convívio à mesa, a comida não precisa ser protagonista."

Provocado ao escolher uma receita que simbolize sua história e a de suas famílias, Hugo puxou pela memória e lembrou de um prato típico de seu estado, Sonora. Simples, generoso, tem sabor de colo de vó: o caldo de queso.

A sopa quentinha, que leva batata, tomate e cebola, é finalizada com pedaços de queijo fresco, parecido como o nosso minas frescal.

Quando você joga o queijo, ele deixa o caldo esbranquiçado e fica macio, mas não derrete totalmente. Minha abuelita fazia essa receita deliciosamente."

O caderno de receitas da 'abuela' Idolina, herdado pelo mexicano Hugo Delgado  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
O caderno de receitas da 'abuela' Idolina, herdado pelo mexicano Hugo Delgado
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Cozinheira instintiva, daquelas que fazem tudo de olho, sem medidas, Idolina ditou suas receitas pouco antes de morrer, para que a filha as registrasse. Hoje, elas compõem um caderninho, que Hugo herdou e guarda como uma joia.

Receita de caldo de queso
da abuela Idolina