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Antes da ostentação, Qatar era um pobre país de pescadores de pérolas

Os pescadores de pérolas tinham a arriscada tarefa de mergulhar amarrados a pedras e sem equipamento para coletar as conchas - Reprodução
Os pescadores de pérolas tinham a arriscada tarefa de mergulhar amarrados a pedras e sem equipamento para coletar as conchas
Imagem: Reprodução

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

26/11/2022 04h00

Se você pudesse perguntar a alguém, em 1922, quais os países que eram referência em exploração de petróleo, a resposta seria surpreendente. Há cem anos, nações como México estavam entre os maiores produtores. Os países do Golfo Pérsico, que hoje sustentam uma relação imediata com o petróleo (e os petrodólares) no imaginário coletivo, viviam uma outra realidade, com economias chinfrins, baseadas em um negócio completamente diferente.

O Qatar, país-sede da Copa do Mundo, ao lado de seus vizinhos, como Bahrein e Emirados Árabes Unidos, era referência internacional na extração e comércio de pérolas. Uma tradição milenar que acabou atropelada pelo curso da história.

Há evidências de que a exploração de pérolas no Golfo Pérsico vem desde a Antiguidade. Mas o Qatar é um país jovem. No fim do século 16, quando o Brasil já tinha mais de uma dúzia de cidades fundadas, havia apenas um assentamento na península que hoje constitui o Qatar.

Era uma vila pesqueira, que tinha, segundo um texto otomano da época, cerca de mil barcos. Sim, a pujante e riquíssima monarquia que sedia a primeira Copa no Oriente Médio nasceu em volta de pescadores que mergulhavam para caçar pérolas.

O antigo Qatar nasceu com vilas pesqueiras voltadas à 'caça' das pérolas - Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum - Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum
O antigo Qatar nasceu com vilas pesqueiras voltadas à 'caça' das pérolas
Imagem: Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum

No século 17, o comércio qatari entrou de vez nesse jogo global, com holandeses, britânicos e, especialmente, persas explorando as jazidas do golfo. Foi nessa época que novas cidades começaram a surgir.

"A moderna configuração urbana do Golfo Pérsico foi quase inteiramente determinada pela pesca histórica de pérolas", afirma o arqueólogo Robert Carter no livro "Sea of Pearls" ("Mar de Pérolas", sem edição brasileira). Doha começou assim — e também a Cidade do Kuwait, Abu Dhabi e Al-Muharraq, no Bahrein.

Nos anos 1860, o viajante britânico Gifford Palgrave testemunhou e registrou esse Qatar tão diferente do atual. O terreno, para ele, era nada mais do que "montes de lixo e cabanas de mineiros perto da boca da mina, rica e infalível"

Essa mina não é outra senão o mar, um vizinho não menos amistoso para os habitantes do Qatar do que sua terra seca é uma anfitriã mesquinha"

É um relato cru, mas poético. "Nesta baía estão os maiores e mais abundantes pesqueiros de pérolas do Golfo Pérsico. É do mar, e não da terra, que os nativos do Qatar tiram seu sustento, e é no mar que eles habitam, passando em suas águas metade do ano buscando pérolas e a outra metade na pesca ou no comércio."

Por isso, seus verdadeiros lares são os inúmeros barcos que guarnecem as plácidas águas ou ficam enfileirados em longas linhas negras na praia, enquanto pouco cuidado é tomado para ornamentar suas casas de terra"

Tudo por ela. Um material orgânico, produzido naturalmente na reação de ostras e mexilhões a corpos estranhos, que dá à luz esferas lisas de carbonato de cálcio, cujas variadas cores encantavam imperadores indianos e romanos.

A caça às pérolas

O trabalho era extenuante e perigoso. Os mergulhadores vestiam uma roupa de algodão, um grampo de casco de tartaruga ou osso de ovelha no nariz e uma proteção de couro nas mãos e nos pés. E só.

Jogavam uma pedra amarrada a uma corda e mergulhavam a profundidades de até 14 metros. Ficavam debaixo d'água por até dois minutos e voltavam com uma cesta de tecido cheia de ostras. Voltavam para baixo e repetiam o procedimento. Seguiam na função noite adentro. Às vezes, era preciso coletar milhares de ostras até conseguir uma pérola.

O mar era a 'mina' dos pescadores de pérolas - Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum - Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum
O mar era a 'mina' dos pescadores de pérolas
Imagem: Sheikh Faisal Bin Qassim Al Thani Museum

Era uma economia que girava em torno de um produto. Em 1905, 95% da população masculina do Qatar trabalhava com pérolas. Nenhum outro país da região dependia tanto delas, com exceção de Dubai, que além de envolver todos os homens atraía pescadores de outras áreas durante a temporada.

Talvez mais do que qualquer outra dinastia, os governantes do Qatar eram, eles próprios, grandes comerciantes de pérolas e, portanto, dependiam delas para obter renda", explica Carter.

Isso não significava que a família al-Thani, no poder desde o século 19, nadava no dinheiro — não se compararmos a o que viria depois.

Navegando em tradicionais barcos a vela conhecidos como sambuk e apelando para a mão de obra escravizada no carregamento de suas joias submarinas (algo que continuaria sujando a imagem do país no século 21, dadas as condições em que os estádios da Copa foram construídos), os qataris mantiveram esse estilo de vida quando o país virou um protetorado britânico, em 1916. A pesca e a criação de camelos incrementavam a renda.

Nos anos 1930, o que antes era uma prática artesanal e ancestral, centrada no Golfo Pérsico, virou uma indústria, dominada por japoneses. As fazendas de pérolas desenvolvidas no Extremo Oriente tornaram a produção mais previsível, controlada e barata. Viraram o padrão: acredita-se que hoje 95% das pérolas no mercado sejam dessa procedência.

Os países do Golfo estariam condenados à miséria e ao ostracismo (perdão pelo trocadilho). Mas, coincidentemente, quase na mesma época, eles trocaram a base da economia. Sai o branco das pérolas, entra o ouro negro.

Nova fase para a tradição

Na década de 1940, quando o petróleo foi descoberto no Qatar, o que um homem ganhava trabalhando em um sambuk durante três meses não cobria seu pagamento em um mês como funcionário de uma petrolífera. Assim, nos anos 1950, não havia mais quase ninguém mergulhando no mar atrás de pérolas.

Não que o Qatar tivesse dado as costas completamente à tradição. Os novos tempos de consumismo, arranha-céus, eventos internacionais e dinheiro quase infinito de um país com PIB per capita de US$ 61 mil (oito vezes maior que o do Brasil) trouxeram novas formas de explorar as pérolas.

A família Al-Fardan começou com uma pequena joalheria em Doha em 1954. Tornou-se referência internacional no assunto e expandiu os negócios para investimentos, fundou o primeiro banco privado do país e lançou diversos empreendimentos imobiliários.

Vista da ilha artificial conhecida como "The Pearl" (A Pérola), que se estende por quase 4 milhões de metros quadrados saindo da cidade de Doha - Getty Images - Getty Images
Vista da ilha artificial conhecida como "The Pearl" (A Pérola), que se estende por quase 4 milhões de metros quadrados saindo da cidade de Doha
Imagem: Getty Images

O mais notório é Pearl Island ("Ilha da Pérola"), um complexo multibilionário com condomínios, torres, hotéis, praias, lojas e restaurantes (tudo de luxo, é claro) sobre uma ilha artificial. Em outros tempos, a região era um ponto de coleta de pérolas.

O Festival Marinho do Qatar celebra anualmente a tradição, com demonstrações e competições de pesca à moda antiga. Um ancoradouro na capital tem uma fonte no formato de uma ostra aberta. Há torneios voltados a adolescentes, uma tentativa de manter viva a prática que já foi a alma do país.

O estádio Al Janoub, um dos oito da Copa do Mundo do Qatar, foi inspirado nos barcos a vela tradicionais usados na pesca de pérolas  - David Ramos/Getty Images - David Ramos/Getty Images
O estádio Al Janoub, um dos oito da Copa do Mundo do Qatar, foi inspirado nos barcos a vela tradicionais usados na pesca de pérolas
Imagem: David Ramos/Getty Images

Agora, até o fim do ano, esse pequeno e trilhardário país respira futebol — pelo menos é a imagem que se vende. Mas basta contrapor o mapa das cidades-sede com os antigos pontos de exploração de pérolas para entender as origens do Qatar.

É praticamente um espelho. Al-Wakrah, Lusail e Al Khor, além de Doha, bem antes de entrarem no vocabulário da audiência planetária da Copa com seus estádios suntuosos, eram humildes assentamentos desses intrépidos caçadores de pérolas.