Brasileira criou clube de charutos dos 'imensamente milionários' no Qatar
Ao desembarcar no Qatar em 2021 no monumental aeroporto de Doha, a paulistana Mikaela Paim tinha um objetivo: fazer história. E, ela afirma, conseguiu: "sou a única mulher a ter implantado no Oriente Médio um lounge ultraluxuoso de charutos e bebidas premium, um projeto único no mundo".
Para ajudar a família, a labuta havia começado cedo: aos 12 anos, já trabalhava em um bar, e aos 14 era hostess de um restaurante italiano, a longeva Osteria Generale, no Bixiga. "Com o convívio, tive cursos gratuitos de bebidas com os bartenders, o que já me deu uma boa noção".
Aos 16 anos, Mikaela iniciou-se nos primeiros cursos de sommelière, com direito a várias especializações em diferentes bebidas. E charutos. A partir daí, a carreira engrenou. "Comecei a me desenvolver em diferentes áreas desse segmento", conta.
Muito mais tarde, com projetos internacionais no currículo, foi descoberta por um headhunter norte-americano, passou por etapas seletivas e acabou contratada para criar "da laje", como ela brinca, o cigar lounge ("lounge de charutos") mais exclusivo do mundo: o Vintage Cigar Lounge, no hotel St. Regis, unidade ultrapremium em Doha da conceituada rede Marriott.
Era um projeto do rei, ou emir, como eles dizem no Qatar, visando a Copa do Mundo. Ele queria os melhores profissionais de várias áreas. Comandei uma equipe de oito pessoas e em poucos meses estava pronto. Tudo muito bonito e luxuoso, com os melhores charutos, bebidas e comidas do mundo".
Nunca é demais lembrar: álcool, no país, só em bares e restaurantes de hotéis.
Em pleno funcionamento, o Vintage Cigar Lounge é um conjunto de experiências. "Consegui reunir em um mesmo lugar a experiência dos melhores charutos e as melhores bebidas, e não só alcoólicas, mas também chás, cafés, harmonizando com excelente gastronomia. Implantei diversos cardápios".
Um projeto sem precedentes, esteticamente impecável, com toda a pompa que caracteriza a nação, ela assegura.
Com um único senão: mulher não entra.
Morando em Doha, Mikaela, que se autodefine "exploradora" e "faminta por culturas", conheceu as diferentes facetas da nação árabe. Nem todas elas bonitas.
"Sou adaptável, não fico presa a essa ou aquela situação. Estudei bastante o país, só ouvia música árabe na playlist. Busquei me integrar, por isso não 'sofri'", relembra, bem humorada.
No Golfo Pérsico, o Qatar é talvez o país mais aberto nesse sentido. Se não quiserem, as mulheres não precisam usar hijab (tradicional véu que cobre a cabeça de mulheres muçulmanas)"
O receio de ser mulher à frente de uma missão envolvendo tabus sociais logo se dissipou. Não sem (muitas) provações.
"Era testada o tempo todo. Meu escudo era a competência. No mundo árabe, é quase inconcebível uma mulher, qualquer mulher, dizer a um homem o que fazer. Como eu estava em cargo de chefia, isso incomodava, diz.
Mesmo recomendar que charuto escolher e com qual bebida harmonizá-lo, às vezes era um desafio. Mas dava certo, porque eles voltavam e traziam outro amigo sheik ou empresário"
Ainda assim, aproveitou o que de melhor o país oferece e mergulhou em sua cultura: visitou museus e exposições, frequentou mercados públicos (os souqs), afinou-se com a culinária local ("excelente, e olha que sou vegetariana"). E descobriu seu maior lazer, durante as folgas: longas tardes no deserto, a não mais de 60 quilômetros da capital.
Por ser estrangeira, morar sozinha (em um apartamento de 150 metros quadrados) era normal. Se fosse qatari, isso nunca aconteceria. "A mulher qatari mora com a família até casar. Sozinha, nunca".
No dia a dia, convivia com algumas das fortunas incalculáveis do planeta — os habituês do lounge eram xeques, príncipes, premiers, megaempresários, diplomatas, o alto clero da política qatari.
Atendia a família Al Fardan, a segunda mais rica do país, e também os Al Thani, a família real que dirige o Qatar. Nunca vi ou falei com o rei, algo muito raro até para políticos locais, mas trabalhei diretamente com filhos, sobrinhos e cunhados do clã real"
"Aliás, o tempo todo eu estudava seus portfólios, porque se essas pessoas de repente aparecessem, eu não podia não saber quem eles eram", conta
O outro lado do Qatar
Por atender um público que define como "imensamente milionário", Mikaela frequentava eventos idem. "Eram festas inimagináveis, gastando absurdos em coisas totalmente desnecessárias, grandes banquetes onde não se comia dez por cento do que havia ali". Mas a empreendedora é incisiva: sua vida qatari não se resumiu a surfar na "bolha" dos estrangeiros.
"Como disse, sou meio camaleoa. Era convidada em festas de famílias ricas, mas frequentava a casa do cara da faxina do meu prédio, do segurança, conhecia suas famílias". Todos eles, claro, estrangeiros. Vem daí seu único choque cultural no país.
"Essa é minha maior dor pessoal. Era difícil ir para essa outra realidade e conhecer pessoas por vezes com dificuldade em comprar comida", recorda.
No país mais rico do mundo, com maior quantidade de Ferraris, esperava encontrar mais igualdade. Era difícil não acreditar que aquilo era uma forma de escravidão moderna"
"Eu ganhava bem, mas também gastava bem. Embora não pagasse aluguel, tudo é muito caro, uma compra de supermercado para uma semana sai por quase R$ 2 mil. Mas essas pessoas, que muitas vezes dividem apartamentos de 50 metros quadrados em três ou quatro indivíduos rachando as despesas, na maioria das vezes estão lá para enviar dinheiro para suas famílias".
Mikaela detalha a distorção. Em uma população atual de perto de três milhões de almas (o estado de Sergipe tem 2,5 milhões), apenas 10% são qatari "raiz" (os demais 90% são estrangeiros, de mais de cem países, mas notadamente da Índia, Bangladesh, Paquistão e nações árabes em conflito). Mas são os que pilotam Ferraris e Lamborghinis.
Não existe classe baixa ou media no Qatar, só ricos e muitos ricos. Também não existe mais o qatari 'do campo'. O qatari padrão não trabalha, porque ganha um percentual dos lucros do país, que tem 15% do gás do mundo e grandes investimentos diversificados no exterior. No Reino Unido, o Qatar tem mais terras que a família real"
"Você não vê, por exemplo, um qatari no metrô — que, aliás, é espetacular. O dia deles começa tarde, Doha só funciona pra valer lá pelas dez ou onze da manhã. Nessa hora, um qatari padrão está procurando um café luxuoso que lhe agrade para passar umas três horas por lá nas mídias sociais, antes de ir para os grandes shoppings", conta.
Tudo no país, ela afirma, é luxo, extravagância, ostentação, temas que costumeiramente pautam muitas das conversas de qataris com quem conviveu — e que com ela simpatizavam por trazer à mesa histórias de suas muitas viagens.
Os menos milionários moram em Doha, e os mais ricos, em palácios fora da cidade, guarnecidos por escolta armada"
Ela analisa esse estilo de vida como ultrarrico, mas brega, "já que só as gerações mais novas costumam buscar novas experiências, viajar ou mudar para o exterior, seja por turismo ou para estudar".
Mais revelações. "Não existe no Qatar, por exemplo, um gerente de restaurante qatari. Tudo são os estrangeiros, inclusive as lojas e bazares dos souqs, que quando raramente pertencem a qataris, é coisa de décadas, famílias muito antigas".
Quando um estrangeiro mais graduado aporta por lá para morar, ou já veio empregado por multinacionais, ou casou com qatari — Mikaela conheceu uma brasileira casada com um piloto da Qatar Airways.
"E se por acaso uma qatari bilionária decide 'trabalhar', o marido monta pra ela uma franquia Chanel ou Rolex. Mas ela quase nunca vai, quem toca o negócio são os empregados estrangeiros", conta.
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