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Comeu, tem que ir embora: como é a casa de ramen mais antiga da Liberdade

Ramén do Aska, o mais longevo da Liberdade, segue a tradição - Rafael Salvador
Ramén do Aska, o mais longevo da Liberdade, segue a tradição Imagem: Rafael Salvador

Gabrielli Menezes

Colaboração para Nossa

29/11/2022 04h00

Ao sair da estação Liberdade do metrô, em São Paulo, vire à direita. Siga por cinco minutos na Rua Galvão Bueno. Chegue à casa de toldo azul, no número 466, e pronto: você estará mais próximo do Japão.

Como o nome na fachada aparece discreto, a fila é mais eficiente em anunciar que lá é o Aska. Em operação há 22 anos com a mesma receita e aparência e sem perder público, é o mais longevo restaurante de ramen da cidade.

Ao contrário de outros estabelecimentos igualmente relevantes, porém, o endereço prefere manter-se oculto na mídia. Tal discrição vem do japonês Takeshi Ito. Hoje com 80 anos, ele fundou o negócio ao lado da esposa. Avesso à exposição, evita holofotes e nega dar entrevistas a respeito do requisitado macarrão mergulhado em caldo fumegante de frango ou porco que serve desde antes de virar hype na capital paulista.

Isso ao menos até o autor e produtor cultural Jo Takahashi convencê-lo por meio de contatos em comum a contar a sua história para o livro "Ramen/Lámen". Duas horas de uma conversa inédita, com direito à tigela da sopa, renderam um capítulo da obra que traça o perfil histórico da comida.

Jo Takahashi em entrevista inédita com Takeshi Ito - Rafael Salvador - Rafael Salvador
Jo Takahashi em entrevista inédita com Takeshi Ito
Imagem: Rafael Salvador

Jo revela os bastidores do restaurante que, embora não tenha sido o primeiro do ramo no país (esse feito cabe ao extinto Sapporo Ramen, inaugurado na década de 1980), serviu de referência para aqueles que não fazem parte da comunidade nipônica.

"O Aska é um fenômeno raro na cena gastronômica. Reinou sozinho como a única casa especializada em ramen de 2000 a 2008, quando surgiu o Lámen Kazu. A convivência dos dois no bairro da Liberdade foi muito didática.

Entre a tradição e a contemporaneidade, eles criaram juntos os alicerces para a moda do ramen em São Paulo", diz Jo.

Capa do livro "Ramen/Lámen" - Rafael Salvador - Rafael Salvador
Capa do livro "Ramen/Lámen"
Imagem: Rafael Salvador

Uma cópia afetiva

No salão do Aska, um amuleto de madeira dá a pista de como o projeto gastronômico começou. Ele está talhado com o nome do restaurante comandado pelo mestre de ramen que ajudou Ito a entrar em outra profissão aos quase 60 anos.

Amuleto e ramen do Aska - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Amuleto e ramen do Aska
Imagem: Reprodução/Instagram

Nascido no Japão, Ito veio pela primeira vez ao Brasil temporariamente, com a missão de realizar uma pesquisa de mercado para a empresa para a qual trabalhava. Logo voltou, também a mando da firma, como engenheiro eletrônico expatriado. Após 24 anos na corporação, se aposentou e decidiu ficar por aqui de vez.

À época, a Liberdade vivia o boom da culinária japonesa dos sushis e peixes cru.

Faltava no bairro um estabelecimento especializado em ramen. Ito resolveu colocar em prática o velho sonho de trazer a São Paulo a comida afetiva de sua juventude", diz Jo.

A barreira era uma só: Ito não tinha nenhuma experiência na área. O jeito foi embarcar para um estágio na província de Tochigi por quatro meses. No período, aprendeu os segredos tradicionais do caldo, do macarrão e de toppings como a barriga de porco, oferecidos no topo da cumbuca.

Com muita humildade, o senhor Ito nos revelou que resolveu copiar tudo, "sem pensar ou questionar nada".

As informações — caso do passo a passo da receita, do tipo de louça e do estilo do mobiliário, o que inclui até a altura do balcão —, foram anotadas, trazidas na mala e replicadas fielmente no Aska. "Foi a regra que me impus. Assim, evitaria os possíveis erros", disse Ito em depoimento ao livro.

Legado em mãos paraibanas

Preparo do prato fica a cargo de funcionários paraibanos - Rafael Salvador - Rafael Salvador
Preparo do prato fica a cargo de funcionários paraibanos
Imagem: Rafael Salvador

Se Ito conhece uma única forma de fazer o prato, com os funcionários do Aska a história se repete. A brigada fiel responsável por manter o padrão da casa é formada majoritariamente por paraibanos que nem sequer haviam provado o típico macarrão ensopado antes de chegar a São Paulo vindos da cidade de Casserengue, de menos de 7 mil habitantes.

"O sr. Ito dá formação, explica tudo do zero. Eles vêm chamados por conterrâneos já com a garantia de trabalho", aponta Jo.

Um deles é José Lourenço da Costa. Considerado possível sucessor a chefiar a cozinha, está há 16 anos na casa e segue os passos do primo, que foi de faxineiro a braço direito do dono e atualmente segue carreira independente.

Nunca tinha visto um japonês na vida, nem experimentado comida japonesa. Fui aprendendo a preparar, pegando o jeito... O ramen representa meu primeiro emprego e o meu futuro", conta José.

Ramen com shoyu e receita importados do Japão - Rafael Salvador - Rafael Salvador
Ramen com shoyu e receita importados do Japão
Imagem: Rafael Salvador

O seu ramen preferido é o que leva missô. Mais encorpado, é o campeão de pedidos nos dias frios. No resto do tempo, reina o ramen preparado com shoyu fermentado naturalmente e sem conservantes, importado do Japão.

Ito justifica o cuidado: "O shoyu é a vida do ramen. Preservar a qualidade do shoyu é garantir a excelência no sabor".

Inspiração e "falta de educação" amorosa

O público que se alinha na entrada à espera de um lugar é uma mistura de imigrantes, descendentes, jovens casais e estudantes. "O senhor Ito defende que seu ramen deve ser saboreado com o que sobra da mesada. O preço é amoroso", fala Jo.

A discreta fachada do Aska - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
A discreta fachada do Aska
Imagem: Reprodução/Instagram

A porção individual custa em média R$ 27, valor que equivale à metade do que é cobrado nos lugares mais novos e badalados. Boa parte da clientela, no entanto, está interessada no que vai além. Embora Ito prefira não visitar a concorrência — diz não querer "deixar os outros constrangidos" —, chefs de cozinha se sentam no balcão do Aska para se inspirar.

Único não japonês e não nipodescendente a ter seu trabalho com a receita contado no livro, o chef Thiago Bañares se coloca como parte da geração influenciada pelas tigelas servidas por Ito. "Para mim, e para muita gente, foi a porta de entrada para entender o que são as casas de ramen japonesas. Vou lá ainda hoje".

À frente do Tan Tan Noodle Bar, melhor bar do Brasil segundo o ranking The World's 50 Best Bars, ele elogia o guioza recheado de carne suína e muito nirá (cebolinha japonesa).

Guioza é item obrigatório nas casas de ramen. E o de lá é o melhor da cidade".

Além da comida e do ambiente, há outros dois motivos que aproximam o Aska e o Japão.

No balcão e na mesa, o esquema é "comer e ir embora" - Rafael Salvador - Rafael Salvador
No balcão e na mesa, o esquema é "comer e ir embora"
Imagem: Rafael Salvador

Primeiro, o serviço que mira na rotatividade. O cardápio diz: "depois de comer, favor desocupar o lugar o mais breve possível". Ito fala que os habitués brasileiros se acostumaram e não reclamam mais, mas brinca: "acho que não existe nenhum restaurante tão mal-educado assim com o cliente".

E segundo, o kodawari, palavra sem tradução exata que Jo define como uma "intensa obsessão" e Ito exemplifica numa frase:

No Japão, há pessoas que comem ramen todos os dias. O ramen é a vida delas. Existe alguma outra comida no mundo que seja tão misteriosa e atraente?"