Implante de pena, cirurgia no bico: como é o hospital para falcões no Qatar
Piso de mármore, ar-condicionado, recepção para retirar senhas e sofás com belíssimas estampas árabes para sentar e esperar. Poderia ser mais um hospital de luxo convencional. Mas toda essa estrutura espera por pássaros que precisam de atendimento médico. Ou melhor: esperam por falcões, o animal de estimação mais comum do Qatar.
Raio-x, coleta de sangue, laparoscopia e até sequenciamento genético. O Souq Waqif Falcon Hospital, localizado no centro antigo de Doha, capital do Qatar, é uma clínica com todo tipo de tratamento para esta que já foi considerada a ave nacional do país.
Na recepção, cenas que colocam em dúvida o estereótipo de que os árabes são insensíveis. Homens andam de um lado para o outro com seus falcões empoleirados no braço, ansiosos para serem atendidos. Dois amigos se concentram para pesar seus falcões. Outro espirra cuidadosamente um pouco de água no bico do falcão para mantê-lo hidratado no calor. Tem até quem se declara, mesmo tímido, enquanto alisa as penas do seu pássaro. "É como um filho para mim", diz o qatari.
Membro da família
A paixão por essa ave é antiga, vem dos povos beduínos que viviam no deserto e treinavam os falcões para caça. Sendo um dos animais mais rápidos do mundo e com uma visão ocular oito vezes melhor do que a dos humanos, o falcão é um ótimo caçador.
Apesar da modernização, infraestrutura e dinheiro que o país tem hoje, a tradição continua. Tanto que foi reconhecida pela Unesco como patrimônio cultural da humanidade.
Além de serem ótimos animais de caça, os falcões são capazes de criar vínculos com o seu tutor, reconhecendo-o de longe. Um falcão pode voar quilômetros, mas sempre volta para os braços do seu dono. São tão fiéis que qualquer pessoa pode tentar alimentá-lo, mas ele só vai aceitar comida de quem o criou.
É como parte da família. O falcão fica com você dentro de casa, quando você está jantando, quando está com os seus amigos, no carro. Ele está sempre com o tutor e é tratado como um filho" Ikdam Majed Alkarkhi, diretor do hospital de falcões
Não é exagero. Para você conseguir entender melhor, dá para comparar a relação que temos com os cachorros aqui no ocidente. Os falcões recebem nomes, têm seu próprio quarto com ar-condicionado dentro de casa e vivem como se fossem um membro da família.
Durante a temporada de caça nos meses mais frios do Oriente Médio (entre agosto e abril) os tutores costumam levá-los para a natureza onde podem caçar como forma de brincadeira e prática de exercício. E chegam a ir para outros países, uma vez que os falcões também podem tirar passaporte e voar de graça em companhias aéreas do Oriente Médio — se você já viu fotos de aviões lotados dessas aves, não era montagem.
Nos meses mais quentes, os falcões ficam reclusos em casa, trocam de penas e fazem uma dieta especial cheia de nutrientes.
O hospital
Um homem observa atento o trabalho dos veterinários enquanto um dos seus cinco falcões passa por uma endoscopia. "Trouxe para fazer check-up, já que passamos os últimos dias no deserto". É assim que funciona na alta temporada — os tutores costumam levar seus falcões para uma consulta a cada quinze dias para conferir se as atividades de caça não afetaram a saúde do pássaro.
Nesta época, o hospital costuma atender em torno de 150 falcões por dia. No dia anterior à nossa visita, havia atendido 260.
Com infraestrutura digna do Qatar, onde o orçamento parece não ter limite, o hospital tem uma equipe de 40 pessoas distribuídas em três andares. E não custa caro cuidar da saúde de um falcão no Souq Waqif Falcon Hospital: as consultas são gratuitas, subsidiadas pelo governo que considera importante manter a tradição cultural no país.
Ikdam Majed Alkarkhi trabalha no hospital há 15 anos e hoje tem o cargo de diretor, mas gosta mesmo é de ficar entre os atendimentos. Nascido no Iraque, é apaixonado por pássaros desde criança, e foi isso que o motivou a estudar medicina veterinária com especialização em patologia aviária e se mudar para o Qatar para trabalhar com falcões.
Bastante requisitado, assim que Alkarkhi sai da sua sala um dos membros da equipe traz uma ave para que ele confira se está mesmo tudo bem. Outro chama para checar uma lâmina no microscópio. Em seguida, dois tutores mostram apreensivos seus falcões, até que escutam um "vai ficar tudo bem", de quem parece ser a maior autoridade por ali.
Passada a correria, o diretor tira um tempo para admirar o trabalho de um dos colaboradores que faz o que chamam de "manicure-pedicure", um lixamento das unhas e bicos do falcão. Ele explica que o trabalho parece simples, mas é uma prática que exige cuidado e deve ser feita na medida certa para não machucar.
Na sequência, o diretor do hospital aproveita para mostrar para a reportagem de Nossa as gavetas de penas usadas para implantes e ensina animado como cada uma representa uma espécie diferente de falcão.
O hospital pode ser frequentado por qualquer pessoa, desde membros da família real do Qatar com seus falcões de pedigree até um cidadão comum. O veterinário deixa claro que o tratamento é o mesmo. "O objetivo é cuidar de todos os falcões e mantê-los saudáveis".
Mantendo a tradição
Os falcões podem viver até os 25 anos e alguns tutores costumam sofrer muito quando percebem que seus pássaros estão morrendo, conta Ikdam.
A importância dessa tradição é tão grande para a cultura do país que os pais ensinam as crianças a conviverem com falcões desde cedo. E é comum ganhar a ave de familiares e amigos.
Além da ancestralidade e do vínculo afetivo que se cria com esses animais, o veterinário acredita em algo mais: na qualidade de vida ao conviver com um falcão. Numa época em que adultos e crianças são cercados pelo excesso de informação e vivem atrás de telas, ele conta, emotivo, a diferença que esse hábito cultural pode fazer na vida das pessoas:
Ir para o deserto com o seu falcão, fazer uma fogueira e tomar um chá acaba com qualquer stress e ajuda a dormir melhor. Você deveria tentar"
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