Colombiano trouxe ao Brasil sua comida rural e tamales feitos em família
Espremida entre quatro parques nacionais, bem longe do mar e a 6 horas de carro da capital Bogotá, a pequena Chaparral, no coração da Colômbia, carrega 250 anos de história e abriga menos de 50 mil habitantes. Se é assim hoje, imagine três décadas atrás.
A vida era tão sossegada que os irmãos Dagoberto, Andrea e Wanda podiam visitar o sítio do avô, nos arredores da cidade, todos os dias.
Na propriedade onde criava gado e plantava café, o velho Napoleón se encarregava pessoalmente de nutrir o trio de netos — botava rapadura ralada nos copos, com um dedinho de conhaque, e levava a turma até o estábulo para ordenhar o leite. Depois que tomavam aquele copão de leite morno turbinado, a criançada ia para a escola.
Criado nesse ambiente, é natural que o chef de cozinha Dagoberto Torres, 39 anos, mantenha até hoje uma forte conexão com o campo e com a cultura de seu país. Seus pais, Dagoberto e Amanda, eram donos de uma rede de farmácias e muito apegados às famílias de ambos os lados. Os encontros eram alegres e frequentes, em todas as datas especiais e celebrações religiosas.
Juntavam muita gente, tios e primos, e ficaram gravados para sempre na memória do garoto. O dia de preparar tamales, então, era uma festa — e com entrada livre para as crianças. Cada um era incumbido de uma etapa do preparo da receita salgada, que lembra a nossa pamonha.
Não é que nos permitissem cozinhar, a gente era obrigado. Os pequenos só limpam as folhas de bananeira. Já pode mexer com fogo? Então pode queimar as folhas. Já pode manipular facas? Assume outras tarefas, e conforme a idade íamos ganhando novas responsabilidades."
"Sustança" em todas as refeições
No dia a dia, as refeições eram substanciosas, como pede a rotina da vida no campo — muita galinha caipira, arroz, lentilhas, banana da terra, língua bovina, vagens e mandioca. O sancocho, cozido caldoso de frango, comum a vários países andinos, leva abóbora, milho verde e muito coentro. Era servido com arroz, abacate e patacones, torradas feitas de banana — mas ai da criança que se servisse antes dos mais velhos.
"Havia uma hierarquia à mesa, os avós eram os primeiros a pegar as partes do frango de que mais gostavam. Depois vinham os pais e, por último, os mais novos. Naquela mesa de 25 pessoas, eu sempre achava que não sobraria nada para mim", lembra.
As moelas eram as mais disputadas e raramente chegavam aos pratos infantis. "Não me esqueço do dia em que meu avô me sentou no colo dele e dividiu a moela comigo."
Sopas são de lei e nunca faltam, como acontece com o nosso arroz com feijão diário. "Somos apaixonados por sopas e cada região tem suas receitas", ele conta, com saudade dos ingredientes que não encontra por aqui.
É o caso do colicero, banana gorducha e pequena, sempre muito azeda, que entra no caldo com carne de porco e ervilhas. "Fica ácida, é muito boa", derrete-se.
O café da manhã não ficava atrás em termos de "sustança". Composto de três etapas, começava com um caldo, que podia ser de frango, costela, miúdos ou peixe, e seguia com o calentado, literalmente um prato de comida de véspera, requentada. "A Colômbia tem restaurantes especializados em calentados, onde informam 'nada do que você vai comer aqui foi feito hoje'", conta.
Depois do tal calentado, o desjejum terminava com café, suco ou chocolate quente. O pão até podia aparecer, mas obrigatória mesmo era a arepa, disco de milho branco que podia ser recheado com queijo ou carne — ela estava sempre na mesa, em todas as refeições. "Comemos arepas até com sopa, a gente vai quebrando e colocando no prato."
Choro no refeitório
Sem muito apreço pelos bancos escolares, o jovem Dagoberto vivia às voltas com notas baixas e ameaças de reprovação. Gostava mesmo era de trabalhar, sempre por conta própria, para arrumar um dinheirinho que fosse seu — um valor para os colombianos, surgido muito antes que o termo empreender ficasse famoso.
Criança ainda, ele colhia laranjas no sítio da família e as vendia no mercado, nos fins de semana. Já adolescente, montou um carrinho de cachorro-quente na calçada de uma das farmácias do pai. O sanduíche faria sucesso na São Paulo contemporânea: levava salsicha, batata chips triturada, cebola, queijo fresco ralado, geleia de abacaxi, ketchup, mostarda e maionese.
Aos 16 anos, Dagoberto assumiu uma empreitada que deixaria muito adulto experiente de cabelo em pé: comandou, por três meses, o refeitório frequentado por um grupo de 30 trabalhadores da indústria petrolífera.
Minha avó era dona de um hotel e quiseram contratá-la para fornecer as refeições, mas ela me repassou o serviço. Eu servia café da manhã, almoço e jantar, mal dormia e não tinha nem geladeira para tanta comida. Foram meses de choro e lágrimas, mas uma super experiência."
De olho no Atala
Imagine que, com toda essa bagagem precoce, Dagoberto ainda não tinha entendido que a cozinha era seu destino. Já morando na capital, para onde se transferiu com a ideia de cursar medicina, mudou de ideia após levar uma sacudida da então namorada.
"Depois de me lembrar que tenho pavor de sangue, ela me contou sobre as vagas abertas em uma escola pública de gastronomia", confessa.
Formado pela Sena, Dagoberto fez o estágio obrigatório no hotel Sofitel, mas nem pensou em ser contratado. Queria mesmo voar para longe, para a cidade onde morava um tal de Alex Atala. "Vi na TV que ele era considerado um dos melhores do mundo e pensei em pedir um estágio. Não fiquei nem para a cerimônia de graduação. Assim que acabaram as aulas, vim para São Paulo."
A pressa era tamanha que Dagoberto não atentou para fatos importantes: não falava uma palavra de português e almejava uma vaga que, na época, já era disputadíssima pelos estudantes de gastronomia locais. Na porta do D.O.M., soube que deveria seguir todo um protocolo de candidatura e foi procurar emprego em outros estabelecimentos.
Acabou contratado como auxiliar de churrasqueiro pelo bar Posto 6, mesmo sem dominar o idioma — e sem entender patavina de churrasco. Quatro meses depois, chegou o esperado convite para estagiar no D.O.M., de onde saiu, um ano e meio depois, como cozinheiro do menu-degustação.
Família na cozinha, sopa no café
Empreendedor nato, Dagoberto não desperdiçou a oportunidade de abrir a própria cevicheria em 2010, a Suri Ceviche Bar, quando o assunto era novidade em São Paulo. Ao lado, inaugurou o extinto Maiz, especializado em empanadas colombianas. Saiu da sociedade do Suri sete anos depois, trabalhou um tempo como consultor e acabou inaugurado a Barú Marisquería em 2018.
Embora a cozinha da casa se baseie em peixes e frutos do mar, que ele desconhecia durante a infância em Chaparral, há muito da comida dos Torres no menu. Todas as receitas começam, por exemplo, pelo hogao, espécie de refogado que leva cebola, alho, tomate e cebolinha e muda conforme a família e a região.
"Também levo as arepas e os patacones para todo lugar e sirvo o ceviche com as tortillas que comia na minha casa. Era nosso clássico no café da manhã", admite.
Pai de três crianças — Cecília, 8 anos, Flora, 3, e Raul, 1 ano e meio —, Dagoberto tomou para si a tarefa de alimentá-los. Já que o trio cresce como todo brasileiro, almoçando arroz com feijão diariamente na escola, ele faz questão de garantir a maior diversidade possível nas outras refeições.
No dia da entrevista, o jantar seria sopa de canjica branca com favas, couve, cenoura, milho e costelinha suína.
Sempre faço caldinhos de manhã também, eles reclamam que parece almoço", acha graça.
Quando a rotina do restaurante permite, ele junta os três na cozinha e prepara tamales, dividindo tarefas: Cecília já tem mais autonomia, Flora e Raul ajudam nas etapas que não envolvem fogo ou facas. Exatamente como faziam seus pais e avós.
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