Feijoada nasceu em Portugal, mas foi no Brasil que virou paixão culinária
Certamente você já ouviu que a feijoada foi criada a partir da utilização de partes dos porcos descartadas — como orelhas, rabos e pés — por negros escravizados no Brasil.
No entanto, apesar de a feijoada ser encontrada em vários países africanos, com uma ou outra mudança de ingredientes, a verdade é que o prato reproduzido no Brasil tem herança portuguesa.
Segundo a chef portuguesa Marlene Vieira, a feijoada em terras lusitanas tem origem na escassez, como tantos outros pratos.
"O uso da couve (repolho), de feijões secos e de carne de porco defumada tem a ver com os invernos rigorosos de Trás-os-Montes", explica Marlene. Na região serrana de Portugal, a neve costuma dar a caras nos meses mais frios do ano, o que dificulta a obtenção de alimentos.
A chef conta que, tradicionalmente, quando os dias estavam mais quentes, era feita a matança do porco, em uma celebração de gratidão pelo alimento. Algumas carnes eram consumidas de imediato, como as bifanas (bistecas). As outras, eram preservadas no sal ou nos processos de defumação, para serem consumidas no inverno, em preparos na panela — como a feijoada.
O chef Paulo Soares, responsável pelo setor de cozinha brasileira da Le Cordon Bleu de São Paulo, recorre ao ícone da história da "Gastronomia do Brasil", Luís Câmara Cascudo, para reforçar a origem do prato.
"Ele fez uma coleta de dados aprofundada, com direito a muitas viagens, inclusive a Portugal, que não deixam dúvidas sobre a origem lusitana das feijoadas", fala.
Não é sempre igual - nem em Portugal
"Cada família costumar ter a própria receita, com algumas variações da carne usada e dos tipos de feijões", ensina Marlene.
Em Portugal, vale lembrar, há dois tipos de feijão que costumam ser usados no prato: o branco, com grãos um pouco maiores, e o encarnado, na tonalidade avermelhada.
Mas, em comum, todas as feijoadas, seja a transmontana, seja a portuguesa, que não leva repolho, são derivadas do aproveitamento máximo do porco.
A gente brinca dizendo que se aproveita o animal até a unha. Em Portugal, é muito comum os enchidos (embutidos) feitos com sangue, por exemplo".
Além da feijoada trasmontana, quem circula por terras lusitanas também encontra facilmente a feijoada portuguesa. Basicamente, a diferença é a ausência da couve e de outros ingredientes que, eventualmente, também estão presentes na transmontana, como cenoura e batata.
Em outras regiões, como no Algarve, há outras versões de feijoada, com a troca da carne de porco por frutos do mar e peixe. Aliás, a criatividade para adaptar a receita a outros ingredientes é uma marca dos portugueses.
"Tem feijoada até com chocos", diz a chef, referindo-se a um molusco parecido com a lula muito comum na região litorânea. A própria chef tem uma versão na qual, em vez do porco, quem reina absoluto é o carabineiro, um tipo de camarão com carne suave e adocicada.
Brasileira, para português ver
De acordo com Soares, a versão brasileira surgiu no final do século 19, no Rio de Janeiro, com adaptações aos ingredientes locais às técnicas de preparação portuguesa.
Introduzimos o feijão preto, mais comum na nossa dieta, e adicionamos aquela dose de criatividade nos acompanhamentos, com torresminho, farofa, laranja e couve refogada. Sem falar na harmonização com a caipirinha".
Em Portugal, vale lembrar, os acompanhamentos também são, digamos, menos variados. "A gente serve com arroz. A feijoada brasileira é mais enriquecida, especialmente pela farofa. Particularmente, prefiro a versão brasileira", entrega a chef portuguesa.
Ela e muitos portugueses, diga-se de passagem. Em Lisboa, é comum encontrar restaurantes — com raiz brasileira ou não — que servem a "feijoada brasileira". O feijão preto também pode ser encontrado em empórios e redes de supermercados, para quem quer preparar em casa.
Por que a nossa virou ícone
Para a chef Kátia Barbosa, do Aconchego Carioca, a qualidade dos ingredientes e sabores usados no preparo do prato no Brasil faz toda a diferença.
"Nossa feijoada puxa muito no sabor porque a gente gosta de muito tempero, muito alho, pimenta e coentro. Mas, eu acho que o segredo é que a gente abusa no uso das carnes de porco defumadas e salgadas e também incluímos carne seca. E essa mistura toda traz muito sabor".
No preparo da feijoada que serve em seu restaurante, a chef coloca paio, linguiça, bacon, pé, rabo, orelha e até um pouco de peito de carne bovina fresca. "Fica com bastante gordura, que deixa um sabor bem marcante", garante.
E tem a farofa, que é um superdiferencial que só tem no Brasil. A Nigella (Lawson, chef e apresentadora britânica) uma vez provou e disse: parece areia, mas, que areia gostosa. E, não tem como discordar", brinca.
Além do sabor
Independentemente das origens, mais do que um simples prato, Soares lembra que a feijoada, tal como o churrasco, é praticamente um evento social do brasileiro.
"É comida que se faz em panela grande, em grande quantidade e, muitas vezes, em reuniões familiares ou datas festivas", reforça o chef, com a vantagem de ser um prato que rende e não leva ingredientes considerados caros.
E a chef Kátia Barbosa acrescenta: a feijoada carrega um caráter identitário muito forte.
Especialmente para os brasileiros que estão longe de casa, a feijoada tem sabor de saudade e cai como um abraço, como puro afeto", finaliza.
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