Carne na lata é tradição da culinária caipira que ganhou status de iguaria
Morador de Lagoinha, cidadezinha com menos de 5 mil habitantes no interior de São Paulo, José Roberto Landim tem 50 anos de idade e só 26 anos de convívio com a eletricidade — foi só em 1997 que a energia chegou à zona rural do município e ele conseguiu, finalmente, ligar uma geladeira na tomada de casa.
Até então, o jeito era conservar a carne do mesmo jeitinho que faziam sua mãe, Maria Rita, e sua avó, Filipina: fritar bem devagarinho e armazenar dentro da banha.
" É um negócio antigo, do tempo que não tinha geladeira. A gente matava um porco bastante grande, de até 10 arrobas, e guardava a carne na lata", recita Landim, que não perdeu o hábito depois do advento da refrigeração. "
"O bom é que, quando chega visita, a comida está pronta e a gente pode servir mais rápido."
O processo que Landim aprendeu com a sabedoria caipira tem nome chique nas cozinhas da França: confit. Segundo Myrna Corrêa, autora do "Dicionário de Gastronomia" (Matrix), trata-se de uma das formas mais antigas de conservação de alimentos, que pode ser aplicada a carnes de ganso, pato e porco, entre outras.
"As carnes são cozidas lentamente em gordura, que age como conservante e amaciante. Após a cocção, a carne é conservada, geralmente, em recipiente de barro ou vidro, sem contato com o ar e a luz", explica a autora.
Tradição conservada
Pelas cozinhas interioranas do Brasil, é o porco que impera nesse preparo. A receita, passada de pai para filho, é um dos pontos altos do dia da matança do porco, quando parentes e vizinhos se reúnem para abater o animal que passou os últimos meses na engorda.
Como é carne que não acaba mais, diferentes preparos ajudam a aproveitar o bicho inteiro, do focinho ao rabo. Somente pernil, lombo e interior da paleta são destinados às latas. Há muita ciência nessa escolha, já que carnes sem ossos têm maior durabilidade.
"Não é pelo fato de serem cortes nobres, porque o caipira não olha para a carcaça da mesma forma que o caboclo da cidade. O pé de porco é tão disputado quanto o lombo", garante o chef Rafael Cardoso, o Rafa Bocaina, que mantém o ritual no sítio onde vive, em Silveiras (SP).
Hoje, todos os rincões da Serra da Bocaina têm luz elétrica, mas a carne da lata continua sendo uma iguaria. A gente faz por prazer."
Como fazer carne em lata
Na hora do preparo, não pode ter pressa. Temperados com sal, alho e pimenta-do-reino, os pedaços de carne são fritos bem devagarinho, ao longo de horas, na própria banha suína. E nem adianta querer inventar temperos muito diferentes, como adverte Angelita Gonzaga, chef do restaurante Celeiro Arimbá, em São Paulo.
"Se você põe ervas frescas, elas queimam durante a fritura. Pode até colocar uns ramos inteiros de alecrim antes, mas o certo é removê-los na hora de fritar."
Na roça, usa-se a gordura do próprio porco que foi abatido, mas quem vive na cidade grande já encontra banha de qualidade nos empórios e mercados.
É fundamental que, no fogo, a gordura não atinja temperatura muito alta. Como fazer esse controle no fogão a lenha? Taí outra sabedoria caipira. "A gente vai pingando um pouquinho d'água, para que a gordura não passe dos 100ºC", ensina Rafa.
Já bem fritinhos, os pedaços de carne vão para um recipiente fechado, ao abrigo da luz e do contato com o ar, dentro da própria banha, que solidifica e adquire textura pastosa.
A lata é o material mais usado no interior, mas vale apelar para o vidro e até para o pote plástico com tampa hermética. O segredo, ensina Angelita, é ter cuidado para que nenhuma pontinha de carne escape da proteção da gordura, o que compromete a conservação. "Costumo armazenar em latas pequenas, para usar o conteúdo todo de uma vez só", ela diz.
Validade impressionante
Fechada a tampa, Rafa aconselha esperar de uma semana a 15 dias antes de comer, para apurar o sabor. Melhor ainda se for depois de um mês. Depois disso, o tempo de validade é impressionante.
Fora da geladeira, dura até uns três meses se estiver em local fresco. Na refrigeração, é ainda maior. Abri recentemente uma lata que guardei na câmara fria por dois anos, estava deliciosa", diz o chef.
Na hora de servir a carne na lata, não há regras. Se a visita chegou sem avisar, como é costume na roça, basta jogar carne e gordura na panela e esperar borbulhar.
No Celeiro Arimbá, Angelita serve a iguaria como sugestão do dia, na companhia de tutu de feijão ou de feijão tropeiro. Mas os cortes também rendem belos sanduíches e entram naquela farofa rica, que a gente respeita.
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