Com porções e história fartas, cantinas resistem e são símbolo de São Paulo
Entrar em uma cantina italiana é como atravessar um portal, rumo a uma São Paulo de antigamente, que sobrevive em cada detalhe daquele determinado salão.
Seja nos objetos antigos, nas fotografias amareladas pelo tempo, nas fitinhas coloridas e nas garrafas de vinho penduradas no teto, seja na memória das famílias que se reuniram em torno daquelas mesas tantas e tantas vezes, ao longo de quase um século.
Até hoje, a experiência de ir a uma cantina italiana é quase sempre a mesma. Envolve um garçom das antigas, daqueles que conhece o cliente habitual pelo nome, que vai colocar uma travessa enorme de comida no centro da mesa — não é um programa para se fazer sozinho.
Para completar, ainda tem a trilha sonora, que pode ficar a cargo de músicos que passeiam pelas mesas tocando de "Volare" e tarantela, sob as palmas da clientela animada.
Embora a cena gastronômica paulistana seja repleta de restaurantes italianos modernos e descolados, as cantinas italianas resistem.
Esses estabelecimentos, que têm como marca registrada o fato de serem administrados por gerações de famílias de imigrantes italianos, além de oferecerem uma comida afetiva, que muitos conhecem hoje em dia como comfort food, ocupam um lugar especial no coração dos paulistanos.
Já ouvi de alguns clientes que a Famiglia Mancini não é mais minha, mas uma instituição da cidade. Isso me deixa muito feliz", diz o restaurateur Walter Mancini.
Aos 80 anos segue firme e forte no comando da cantina que leva o seu sobrenome e de mais quatro endereços na charmosa Rua Avanhandava, no centro de São Paulo.
Aos finais de semana, a rua fica repleta de turistas, ávidos por conhecer esse estilo de restaurante que surgiu em São Paulo. Isso mesmo, você encontra ristorante e trattoria na Itália, mas não existem cantinas no país da bota.
"As cantinas eram o lugar onde se vendia vinho, azeitonas, queijos e algo mais para beliscar. O termo acabou ganhando um novo significado por aqui", explica Cristina Oka Roperto, sócia da cantina Roperto, que funciona desde 1942 na Rua Treze de Maio, no Bixiga.
Cozinha das "mammas"
No final do século 19, os imigrantes italianos começaram a desembarcar no Brasil. Em um primeiro momento, foram conduzidos para o interior paulista, para trabalhar nas fazendas de café. Porém, no início do século seguinte, também passaram a ocupar o meio urbano.
Sem dúvida, isso influenciou — e muito — a cultura paulistana em vários aspectos, até à mesa. "Nós temos a cozinha italiana na nossa raiz. Pratos como a macarronada de domingo tornaram-se a base da nossa alimentação", explica a pesquisadora Camila Landi, que é coordenadora do curso de gastronomia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, de São Paulo.
Existem algumas teorias de como as cantinas surgiram na cidade, mas algumas apontam para as "mammas" italianas.
Como uma forma de ajudar a compor a renda familiar, elas começaram a preparar alguns pratos caseiros, que os filhos saíam para vender pelas ruas dos bairros onde se concentrava a comunidade italiana", explica Camila.
Muitos desses imigrantes também passaram a servir refeições em suas próprias casas. Esse foi o caso de mamma Rosa, avó do chef Bruno Stippe, da Cantina C... Que Sabe!, no Bixiga, que cozinhava para os imigrantes em sua própria casa, na companhia de seu marido, Francesco, que também era cozinheiro da família Matarazzo.
O sucesso foi tanto que, dali, surgiu a cantina Mamma Rosa, inaugurada em 1939, que, posteriormente, se tornou o restaurante Peperone. Até que, na década de 1970, foi rebatizada por Roberto Stippe, pai de Bruno, com o nome atual — C... Que Sabe!
Até a década de 1990, o restaurante investiu na cozinha internacional, que era o "must" da época, mas logo que o chef Bruno Stippe assumiu, ele voltou às origens.
Depois de uma temporada na Itália e na França, eu percebi que a tendência era nacionalizar e regionalizar a cozinha. A cozinha internacional ficaria na hotelaria", conta ele.
Receitas ítalo-paulistanas
Assim como não existem cantinas na Itália, alguns pratos tampouco marcam presença nos cardápios dos restaurantes do país da Bota. É o caso do filé à parmegiana, no qual a carne é empanada, frita e servida (na travessa, lembre-se) mergulhada em molho de tomate e coberta com queijo.
Já a lasanha ítalo-paulistana não tem as pontas tostadinhas como a versão italiana, mas tem abundância de molho e leva camadas de presunto.
Outro ícone é a sardella. Enquanto a versão calabresa do antepasto seja feita com sardinha, azeite e peperoncino, a versão paulistana leva anchova, pimentão vermelho, tomate, pimentas calabresa e dedo-de-moça, além de ervas e azeite. "Mas a receita varia muito de um restaurante para o outro", explica a coordenadora do curso de gastronomia do Mackenzie.
Quando eu estagiei em um restaurante na Itália, o meu chef nunca tinha ouvido falar em sardella", lembra a chef Marta Fuzinato, da cantina Mamma Celeste, no Bixiga.
Inaugurada em 1990, a cantina começou como uma rotisserie que vendia massas, molhos e afins. Com o tempo, passou a servir refeições e se tornou um restaurante. Para assumir a cozinha da cantina da família, Marta estudou gastronomia no Senac e no ICIF (Italian Culinary Institute for Foreigners), na Itália. Porém, boa parte das receitas feitas na cantina continuam sendo as de sua mãe, Celeste, que faleceu em 2019.
"Ela era uma exímia cozinheira. Até hoje, reproduzimos os pratos dela, como o gnocchi ao sugo com polpetta", conta Marta, que comanda o negócio na companhia de seus irmãos, Márcia e Marcelo.
Embora a cozinha italiana tenha se reinventado por aqui, ainda existem muitos traços da culinária do país da Bota, que se mantém na cozinha de cantina. Um deles é o artesanal.
"Eu uso forno combinado para fazer o molho de tomate, 'sous vide' para preparar algumas carnes, mas os raviólis que eu sirvo são feitos à mão, um a um. Senão perde a alma", acredita Stippe.
Aliás, receitas de família são uma característica que une todas as cantinas italianas da cidade.
Não se trata de algo que se aprende nos livros, mas que passam de geração em geração", diz o chef da cantina C...Que Sabe!.
O segredo da longevidade
Embora o público das cantinas italianas seja formado, basicamente, por turistas ou famílias compostas de duas ou três gerações, ultimamente os jovens têm redescoberto esses clássicos da restauração paulistana.
A clientela da cantina Mamma Celeste, por exemplo, é formada por um público mais jovem, que trabalha nas produtoras de cinema e teatros da vizinhança. Até as famílias que frequentam no jantar e aos fins de semana são formadas por pessoas na faixa dos 30.
Quem procura esse tipo de cantina quer comida de 'vó', mas para se manter é preciso se reinventar sem perder a essência", acredita Marta.
No final de outubro do ano passado, Walter Mancini inaugurou mais um restaurante na rua Avanhandava, o Sweet Mamma. A cozinha, sob o comando da chef Mirella Viggiano, oferece alguns clássicos da cantina, servidos em porções individuais, mas o foco são pedidas mais modernas, como a porção de arancini (bolinhos de risoto de açafrão com recheio de mussarela e servidos com geleia de tomate picante), por exemplo.
Em muitos casos, as mudanças podem ser a única maneira de sobreviver. Com a pandemia, a Roperto, que foi a primeira cantina a se instalar na icônica Rua Treze de Maio, quase fechou as portas. Porém, surgiu a ideia de transformá-la em um empório, que comercializasse produtos de alguns fornecedores.
"Com a retomada, fomos surpreendidos com o retorno dos clientes. Tivemos que reduzir o empório para voltar a colocar mais mesas, mas seguimos fortalecendo o delivery", conta Cristina.
Outra mudança marcante da cantina foi incluir, pela primeira vez na história, porções individuais da maioria dos pratos, exceto um dos carros-chefes da casa, a perna de cabrito assada e servida com batatas ao forno e brócolis.
Também está nos planos montar uma fábrica de massas para, no futuro, abastecer as gôndolas dos supermercados. "Estamos em busca de maquinário para produzir em grande escala, sem perder a nossa qualidade", conta Cristina.
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