Café que lembra rum pode ser sua nova paixão. Conheça os grãos fermentados
Sabe aquela cena clássica do café secando no terreiro, sendo revirado com ajuda de um rodo gigante? Essa técnica bem antiga, que a gente vê em fotos históricas e ainda é usada por pequenos cafeicultores, tem como objetivo revirar os grãos para que os de baixo não fiquem abafados e fermentem espontaneamente.
Quando isso acontece sem controle, microrganismos degradam a polpa e a mucilagem, camada rica em açúcares que envolve a semente, gerando um café bem ruim na xícara, avinagrado e adstringente, que pode até fazer mal à saúde.
Mas já reparou que os cafés mais cobiçados (e caros) nas cafeterias de ponta, restaurantes e lojas online são justamente os fermentados?
Pode parecer incoerente, mas não é — nesse caso, a fermentação é um processo rigorosamente controlado, capaz de agregar muito mais sabor e aroma ao café e, por isso, tem feito tanto sucesso entre os coffee lovers.
Dependendo da técnica de fermentação induzida, e são muitas, um café de alta qualidade pode se tornar excepcional. Alguns ficam extremamente frutados, outros adquirem notas alcoólicas que lembram rum ou uísque — um prato cheio para quem busca novas experiências nas xícaras de cafés.
Quem prova geralmente leva um choque, são realmente exóticos e muito diferentes. Não dá para tomar o dia inteiro sem enjoar.
Mas, quando você toma um gole, é aquele prazer, uma sensação que fica na memória", opina Marcos Kim, consultor de cafés especiais e proprietário do Café com Letras, que funciona aos fins de semana no espaço colaborativo 3º Mundo Lifestyle, no Beco do Batman, em São Paulo.
Orquestra de sabores
Essa moda não é exclusividade do Brasil. Os pioneiros foram os países das Américas do Sul e Central, que adotaram a fermentação, décadas atrás, para driblar o excesso de umidade na época da colheita.
Por aqui, começou há cerca de 15 anos — e ganhou força por permitir que cafeterias e torrefadoras ofereçam mais opções a um perfil de consumidor que vive caçando novidades.
"Como a lei brasileira proíbe a importação de cafés verdes e nos impede de oferecer perfis de outros países, a fermentação acaba sendo uma forma de explorar novas sensações", explica Tiago de Mello, da cafeteria paulistana Pato Rei. "Já vendi cafés fermentados tão esquisitos que eu não conseguia tomar, mas alguns clientes amavam."
Fermentador de primeira hora, Mariano Martins, da Martins Café, fez os primeiros experimentos em 2008. Com base na experiência dos produtores de Huila, na Colômbia, fermentou os grãos em tanques abertos com água. Os clientes, ele lembra, estranharam um bocado.
Depois da torra, me ligavam dizendo que havia algo errado, porque o café parecia azedo. Ninguém por aqui conhecia perfis de torra adequados aos cafés fermentados", conta.
Hoje, o mercado mudou nas duas pontas — e os processos de fermentação conduzidos na Fazenda Santa Margarida, em São Manuel (SP), passam longe do improviso. Sob o controle rigoroso da sócia de Mariano, Fabíola Filinto, os cafés fermentam em ambientes livres de contaminação externa, a partir de receitas precisas.
"Trabalhamos com 12 processos de fermentação. Ao cruzar todos eles com as mudanças de temperatura, tempo e outras variáveis, chegamos a centenas de combinações. Minhas planilhas têm umas 50 linhas", orgulha-se Fabíola.
O segredo das técnicas
Um dos métodos de fermentação mais adotados pelos cafeicultores brasileiros é a anaeróbica.
Logo após a colheita, os grãos maduros são acondicionados em bombonas plásticas bem vedadas, com ou sem água, para que fermentem lá dentro, por alguns dias, sem contato com o oxigênio — uma válvula acoplada à tampa permite a liberação do gás carbônico. Há quem mantenha as bombonas em pé, enquanto outros produtores preferem acomodá-las na horizontal.
É possível iniciar o processo adicionando leveduras exóticas, adquiridas de empresas especializadas, ou optar pela fermentação natural, que se vale das leveduras presentes na própria lavoura.
Na Fazenda São Sebastião, em São Tomé das Letras (MG), as bombonas são enfileiradas em uma caverna com interior azulejado, onde a temperatura se mantém naturalmente em 18ºC, com umidade de 80%.
"Sem querer, a gente criou um microclima parecido com o da América Central. Após sete dias de fermentação lenta, o café sai maravilhoso, com notas de frutas amarelas, acidez equilibrada, corpo cremoso e finalização persistente", descreve Marcos Kim, que participou do desenvolvimento da técnica.
Já a fermentação aeróbica permite que o café entre em contato com o ar. Ela pode ocorrer no próprio terreiro de secagem, a chamada fermentação selvagem, que apesar do nome exige muita atenção a cada etapa do processo, como explica o consultor.
Colocamos os grãos no terreiro em montes, como pequenos vulcões, e não mexemos neles por 48 horas, para só então começar a secá-los. O resultado é uma bebida que lembra frutas vermelhas e pode ficar levemente alcoólica, dependendo da região e do microclima."
Outra técnica de fermentação aeróbica, a chamada fully washed é realizada em tanques, que armazenam os grãos a céu aberto, com ou sem água. Segundo o sócio do grupo Eldorado Specialty Coffees, de Ibiraci (MG), Jean Faleiros, esse método rende cafés encorpados e doces, mas não muito exóticos. "São ideais para máquinas de espresso", acredita.
Especialidade tipo exportação
Cafés fermentados costumam custar caro porque os métodos são trabalhosos e demandam muito investimento e estudo. Erros durante o processo podem causar prejuízo ao produtor e péssimas experiências ao consumidor.
"Você pode perceber notas maravilhosas de morango e, depois de engolir, sentir sabor de amônia, cândida ou mofo, um amargor químico horrível, que lembra gosto de remédio e gera até desconforto gástrico", avisa Fabíola.
Apesar dos riscos, há cada vez mais produtores apostando no crescimento desse mercado. De acordo com Marcos Kim, clientes de países nórdicos e da Rússia são os que mais valorizam os fermentados. "Eles gostam especialmente dessas fermentações mais agressivas, com notas alcoólicas", afirma.
A Eldorado Specialty Coffees, que começou destinando apenas 10% da safra à fermentação, planeja chegar aos 40% este ano. "Já temos três cilindros rotativos, para 10 mil litros cada, que permitem controle preciso dos parâmetros de fermentação em grandes quantidades", diz Faleiros.
No gosto dos chefs
Além de exportar, a Martins Café investe em fermentados sob medida para clientes daqui. O Fat Coffee, à venda no e-commerce da marca, foi desenvolvido para A Casa do Porco — o restaurante, eleito sétimo melhor do mundo pelo ranking 50 Best 2022, precisava de um café que harmonizasse com o menu à base de carne suína.
Para a rede La Guapa, que tem entre os sócios a chef Paola Carosella, o fermentado exclusivo da Martins chega às xícaras em duas versões. "No espresso, que responde por 70% dos pedidos, tem uma crema densa, um café mais old school. Já no coado, fica bem leve", compara Benny Goldenberg, sócio da rede.
Já para o restaurante Jiquitaia, em São Paulo, Fabíola sugeriu um café fermentado com uma levedura que ela conseguiu isolar durante um período de seca.
O café passou por diferentes processos de fermentação e gerou uma experiência bem exótica. Tem notas vínicas que lembram a uva pinot noir, frutas vermelhas marcantes e está evoluindo conforme os grãos verdes envelhecem", poetiza Mariano Martins.
Moído na hora e coado em V-60 Hario na frente do cliente, o café chega pleno de aromas à xícara, segundo Nina Bastos, sócia do Jiquitaia: "Uma pequena parcela do público estranha, mas a maioria se encanta".
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