Carnavais diferentões: fora do Brasil, folia tem comilança e até boia cross
"Desde os tempos mais primórdios", já dizia a impublicável marchinha, o Carnaval é uma festa de esbórnia. É a farra antes de um período de privação e recolhimento, que depois é encerrado em uma celebração de renovação da vida.
A Páscoa simboliza esse ressurgimento, mas não foi a Igreja que inventou isso. Antes já existia a Páscoa judaica e bem antes dela a chegada da primavera no Hemisfério Norte já era marcada por festivais para celebrar a renovação da vida e abençoar as novas colheitas. É algo que os humanos fazem desde a Pré-História.
Quando o sol da primavera despontava, as pessoas, naquelas sociedades agrárias, passavam longas semanas em abstenção, afinal era preciso estocar alimentos e se proteger do frio. Essa rotina e esse contexto acabariam influenciando os calendários religiosos. A quaresma católica vem daí. E, consequentemente, a festa que marca seu início, o Carnaval.
Ao longo dos séculos, essa tradição de se permitir excessos antes de se recolher a um período mais abstêmio (por necessidade, fé ou ambos) misturou rituais antigos, tradições do cristianismo (estabelecido ou imposto) e elementos folclóricos locais para se transformar em festas bem diferentes umas das outras.
Os carnavais do Rio, de Salvador, de Nova Orleans e de Veneza são famosos. Mas não são os únicos do mundo. Bem longe disso. Conheça alguns outros — mesmo que no quesito folia não sejam tão empolgantes, não deixam de ser eventos cheios de história.
Espanha
Em 1939, vencedor da Guerra Civil Espanhola, o ditador fascista Francisco Franco proibiu o Carnaval em todo o país. O veto durou até o fim do regime, em 1975.
Mas, nas frestas da ditadura, manifestações populares dão seu jeito. Algumas festas passaram a se chamar "bailes de inverno" e sofriam com a censura — algo sério, pois o Carnaval, com suas brincadeiras e fantasias, sempre foi um terreno fértil para a crítica social.
"Tinha esse componente pagão que demonizava a Igreja franquista, mas também de subversão da ordem estabelecida", explica o historiador Eduardo Montagut em um artigo a respeito no site espanhol "El Salto".
Em Vilanova i la Geltrú, cidade na província de Barcelona, a população foi mais ousada. Nos anos 1950, as pessoas organizavam bailes de máscaras no Carnaval. Nas décadas seguintes, ganharam as ruas, apesar da proibição.
A folia em Vilanova começa, tradicionalmente, com xatonada, uma típica e bem servida salada catalã que leva bacalhau, atum, anchova, azeitona, amêndoas e avelãs. De sobremesa, merengue.
A mistura de claras de ovos batidas com açúcar vira munição em seguida (por isso a festa também é chamada de Merengada). Crianças e crianças crescidas guerreiam nas ruas da cidade. Atiram merengue e outros doces em honra a "sa Majestat el rei Carnestoltes" ("sua majestade, o rei carnaval", em catalão). O único rei que conta por essas bandas, pelo menos nessa época do ano.
Rússia
Na última semana antes do início da quaresma da Igreja Ortodoxa, Rússia, Ucrânia e Belarus celebram a maslenitsa. É a "semana da manteiga". Isso porque a festa envolve muitas panquecas, pães e outras comidas típicas, como pierogi e syrniki.
Assim como na Igreja Católica, a quaresma ortodoxa pede que se evite o consumo de certos tipos de alimentos. A maslenitsa é a última oportunidade para comer e beber produtos que levem leite, manteiga e ovos antes do período de 40 dias que antecede a Páscoa.
Mas não é só comilança. Assim como o Carnaval do Ocidente cristão, nos países eslavos as tradições da religião oficial se misturaram aos antigos ritos, ao folclore local e às cores e odores do paganismo.
"Começou como uma festa pagã na antiga Rus", escreveu a socióloga Christel Lane em "The Rites of Rulers — Rituals in Industrial Society — The Soviet Case" (sem edição brasileira). "Seu ritual desejava influenciar a chegada da primavera, e era notável pelo culto ao sol. Na Rússia cristã, a Igreja tentou controlar o feriado ao absorvê-lo ao seu calendário."
Há danças, queimas de efígies para se despedir do inverno e atividades ao ar livre, o que, em fevereiro, significa se divertir como pode no frio: trenó, esqui, guerras de bolas de neve e afins.
Guiné-Bissau
Pequeno país da África Ocidental, a Guiné-Bissau fez parte de importantes impérios. Mali, entre os séculos 13 e 16, e Portugal, do 16 ao 20, deixaram marcas no território, da composição étnica da população às manifestações culturais.
Uma delas é o Carnaval. No começo do século passado, era apenas uma festividade em alguns entrepostos da então colônia portuguesa. À medida que o desejo pela independência crescia, a festa ganhou cunho político, com fantasias que criticavam e ridicularizavam o governo colonial.
O Carnaval acabou censurado. Mas, após se tornar a primeira colônia portuguesa a se tornar independente, em 1974, a Guiné-Bissau aos poucos acabou retomando o costume.
Mesmo sendo um país majoritariamente muçulmano, as tradições locais e portuguesas florescem nos dias de folia em fevereiro. Na capital, Bissau, e no arquipélago de Bijagós, há desfiles, paradas, máscaras coloridas de papel-machê e muita percussão, representando as diferentes etnias que compõem o país, que tem apenas 2 milhões de habitantes.
Desde os anos 1950, as crianças têm papel preponderante no Carnaval da Guiné-Bissau, inovando as temáticas nas fantasias ao trazer influências importadas de filmes e quadrinhos. A mistura globalizada é evidente também na música, com muito samba brasileiro. "A Guiné-Bissau é única entre as nações da África Ocidental na importância dada às celebrações do Carnaval", resume a "Enciclopédia Sage de Música e Cultura".
Alemanha
Encravada na Floresta Negra, no sudoeste da Alemanha, a cidade de Schramberg atrai cerca de 30 mil pessoas por ano para seu Carnaval. Com desfiles de mascarados nas ruas e bares cheios até altas da madrugada, já seria o suficiente para ter seu público fiel.
Mas o que se destaca mesmo é a tradicional competição no canal da cidade. Filha improvável do boia cross com os carros alegóricos, essa corrida maluca é uma tradição da segunda-feira de Carnaval na cidade. Ela começou em 1936 como uma brincadeira de jovens, mas evoluiu para um elaborado desfile e acabou virando o feriado mais querido da cidade (naquela época, as pessoas trabalhavam na segunda de Carnaval).
Os 80 competidores, em 40 veículos (desde simples boias até balsas decoradas com temas dos mais absurdos, dos minions amarelos do cinema a antigas máquinas registradoras) descem 500 metros de águas gélidas até chegar à porta de uma igreja. O público se amontoa para acompanhar o desfile.
República Dominicana
Uma das mais antigas cidades fundadas por europeus nas Américas, La Vega está no centro da cultura dominicana em vários aspectos, entre eles o Carnaval. A festa, considerada a mais importante manifestação popular do país, começou a criar forma no fim do século 19.
Alguns autores falam que já se fazia um Carnaval ali no século 16, mas à maneira europeia, com fantasias de mouros e cristãos. As primeiras pessoas escravizadas vindas da África já estavam chegando ao país (a República Dominicana foi pioneira no tráfico atlântico), mas o Carnaval com sua contribuição — vital, para dizer o mínimo —, surgiria depois.
No início, a temática dos desfiles e suas rebuscadas máscaras e fantasias, belas representações da arte afro-caribenha, giravam em torno das disputas do bem contra o mal. A festa cresceu e assimilou datas comemorativas católicas e históricas. Os dias de Nossa Senhora de Altagrácia (padroeira da República Dominicana) e de Juan Pablo Duarte (líder da independência), no fim de janeiro, são o pré-Carnaval do país. E o feriado da independência, em 27 de fevereiro, encerra a folia.
Tida como uma das festas populares mais intensas e autênticas do continente, o Carnaval de La Vega lembra, no visual, algumas versões brasileiras da festa. As diferenças saltam logo aos ouvidos, pois na ilha o que domina são ritmos caribenhos, como a salsa, além dos dominicanos merengue e bachata.
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