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Como um golpe de marketing fez a fama do cemitério mais visitado do mundo

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

25/02/2023 04h00

Em "Paris, te Amo" (2005), de Wes Craven, uma das histórias do filme mostra um casal de turistas perdido no Père Lachaise à procura do túmulo de Oscar Wilde. É um roteiro clássico do cemitério, e se desse para contar quantas vezes a tumba foi beijada, uma mente empreendedora teria montado uma lojinha de cosméticos ao lado, se pudesse.

Todos os anos, milhares de fãs deixavam marcas de batom na sepultura, até que uma barreira de vidro foi instalada, em 2014 (mas ela ainda deixa a parte superior da tumba à mercê dos beijos). A prática parece inocente, mas beijar de batom uma escultura é mais danoso do que pichá-la, porque a gordura presente no batom penetra na pedra, e a lavagem a desgasta e a deixa cada vez mais porosa.

Quem bancou a barreira e as sessões de limpeza todos esses anos não foi a administração do cemitério nem nenhuma entidade governamental francesa, mas a agência responsável pela conservação de edifícios e obras públicas da Irlanda. Afinal, como se trata de um dos irlandeses mais famosos da história, a tumba é um assunto relevante para aquele país.

Foto aérea mostra o famoso cemitério de Paris Imagem: BargotiPhotography/Getty Images/iStockphoto

Mas por que um escritor irlandês foi sepultado em Paris? São os efeitos da mística de 200 anos do cemitério mais visitado do mundo. Mais que isso, o Père Lachaise lançou os fundamentos do que entendemos hoje como um cemitério.

Imortais (que morrem)

Ser enterrado em um túmulo próprio, com direito a lápide, no terreno das igrejas, era privilégio de ricos católicos até a Revolução Francesa bater à porta, no fim do século 18. O resto do povo ia parar em valas comuns em cemitérios usados desde a Idade Média. Os pensadores iluministas já criticavam a prática, do ponto de vista sanitário e moral.

Em 1780, o principal desses cemitérios, hiperlotado, foi fechado. As ossadas foram transferidas para as galerias subterrâneas que hoje compõem a outra grande atração turística alternativa de Paris, as Catacumbas.

Catacumbas de Paris, na França: quilômetros de depósitos de ossos Imagem: Shadowgate/Creative Commons

Mas o problema dos mortos não estava resolvido, ainda mais com a onda de violência revolucionária dos anos seguintes, que deixou milhares de cadáveres pelo caminho.

Foi então que, em 1804, ano em que foi coroado imperador, Napoleão Bonaparte ordenou a compra de uma grande área a leste da cidade. Nessa propriedade viveu, no século 17, o padre ("père") François de la Chaise, confessor de Luís 14.

A ideia do novo cemitério era que todo cidadão, não importasse o credo, tivesse o direito a um enterro digno. Para isso, a cidade de Paris, e não a Igreja, que assumiu a responsabilidade da necrópole. O Père Lachaise seria um cemitério laico, com áreas reservadas para cristãos, judeus e, mais tarde, muçulmanos.

Cemitério Père-Lachaise, em Paris, França Imagem: Pascale Gueret/Getty Images/iStockphoto

Tinha um problema. O Père Lachaise ficava um tanto longe do centro da cidade. São 3 quilômetros da Notre-Dame (a viagem de metrô, hoje, passa por 12 estações em 26 minutos), o que, na época, em uma Paris com meros 600 mil habitantes, era praticamente uma pequena viagem para 0 interior.

Pouca gente queria ser enterrada naquela lonjura. Então, em um golpe genial de marketing, a administração do cemitério decidiu, ainda em 1804, transferir para lá os restos do poeta Jean de la Fontaine e do dramaturgo Molière. Começava ali, no ano um de sua história, a longa relação do Père Lachaise com ícones das várias artes.

Cemitério Père-Lachaise, em Paris, no outono: destino final de famosos e intelectuais Imagem: Getty Images/iStockphoto

Deu certo e, nas décadas seguintes, as pessoas queriam ser enterradas entre os famosos. O cemitério ganhou, além de tumbas impressionantes, monumentos em homenagem às vítimas das tragédias que se seguiram: as revoluções de 1848, a Segunda Guerra Mundial, o Holocausto.

A fama do Père Lachaise correu o mundo, e os turistas queriam ver o local de repouso de seus ídolos - ou apenas de algum artista do qual ouviu falar vagamente. O site oficial lista 250 personalidades. Segundo o departamento de turismo parisiense, todos os anos 3,5 milhões de turistas visitam a necrópole.

O túmulto de Oscar Wilde (1854-1900) no cemitério Père Lachaise Imagem: Bruno DE HOGUES/Gamma-Rapho via Getty Images

Como em muitos outros cemitérios-parques no mundo, no Père Lachaise é possível, além das esculturas e monumentos, admirar a vida selvagem. Segundo um artigo da publicação científica "Nature", esses lugares desenvolvem, com o tempo, uma biodiversidade invejável. O Père Lachaise é lar de cem espécies de aves, além de orquídeas e raposas.

Muitas das sepulturas mais famosas são de estrangeiros que viviam em Paris quando seus corações pararam de vez. É o caso do compositor polonês Chopin, da escritora americana Gertrude Stein e do cantor americano Jim Morrison, vocalista do Doors, além do irlandês Oscar Wilde. Entre os franceses, é claro que há uma série de nomes célebres: Marcel Proust, Georges Méliès, Édith Piaf, Sarah Bernhardt etc.

O túmulo do vocalista do The Doors, Jim Morrison, no cemitério Père Lachaise em Paris Imagem: MARTIN BUREAU/AFP

Mas o francês que possibilitou a criação do Père Lachaise, que fica no 20º arrondissement de Paris, não está lá. Napoleão tem um "cemitério" só para ele, um enorme monumento no complexo Les Invalides, no 7º arrondissement, uma área bem mais central de Paris.

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