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Angústia, nojo e estafa: o lado sombrio da gastronomia ganha as telas

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa

28/02/2023 04h00

A cena se transformou em um clássico do cinema moderno. Sentado em uma mesa acompanhado apenas de sua empáfia, o crítico Anton Ego escorrega os óculos pelo nariz, olha o ratatouille que tem em sua frente com desdém e resolve dar uma garfada.

O que se vê na tela em seguida é pura poesia em animação: Ego é automaticamente carregado por um turbilhão de memórias que o levam de volta à sua infância, trazendo recordações afetivas que ele já nem se lembrava. Seus olhos se enchem de lágrimas.

Mostrar que a comida é, essencialmente, emoção ajudou a fazer de "Ratatouille" (o filme) um enorme sucesso internacional. E no que diz respeito às telas, quase sempre foi assim.

Mas uma nova leva de títulos recentes tem tentado mostrar outros lados das emoções que a gastronomia é capaz de evocar: muito além de contentamento, há angústia, nojo, estafa e até um certo terror por trás de pratos com preparos muito bem filmados.

A cozinha da realidade

Nas telas, a comida se tornou um veículo de expor sentimentos nem sempre tão positivos (ou até impor uma lição moral) — um claro reflexo da própria fase por que passa a gastronomia no mundo, com casos de agressões, assédios e pressão psicológica (leia a reportagem especial do UOL Prime que reúne depoimentos de atrocidades que chefs viveram trabalhando em grandes restaurantes).

Foi-se o tempo dos filmes sobre comida (ou com comida) que davam vontade de comer. De repente, a gastronomia nas telas se tornou uma maneira de falar de batalha de classes, de saúde mental, de traumas.

Do chá que é servido ao personagem de Daniel Kaluuya em "Corra" ao strudel com que se delicia o nazista Hans Landa em "Bastardos Inglórios", a comida se distanciou muito do espaguete com almôndegas de "A Dama e O Vagabundo" e do sanduíche cubano do filme "Chef".

Cena de "The Menu" - Reprodução - Reprodução
Cena de "The Menu"
Imagem: Reprodução

Em "O Menu", um misto de suspense e comédia que se tornou um sucesso recente, o chef leva seus convidados ao limite com ameaças verborrágicas, dedos decepados e muito sangue.

O premiado chef Julian Slowik (interpretado Ralph Fiennes) oscila entre a raiva e a angústia para retratar seus traumas mais profundos em pratos que servem aos poucos clientes que poderiam pagar US$ 1.250 por um jantar.

É uma versão caricata dos restaurantes, claro, mas ao exagerar no tom, o filme coloca uma lupa sobre a relação quase messiânica que os comensais construíram com os cozinheiros, um tipo de submissão que extrapolou das cozinhas às salas.

Preciso implorar-lhes por uma coisa: não comam! Degustem. Saboreiem. Deliciem-se. Reflitam sobre cada pedaço que colocarem na boca. Tenham consciência. Mas não comam. O nosso menu é muito precioso para isso", diz o chef.

Comida de repulsa

 "O Triângulo da Tristeza" - Divulgação - Divulgação
"O Triângulo da Tristeza"
Imagem: Divulgação

Na mesma toada, "O Triângulo da Tristeza", obra do diretor sueco Ruben Östlund, que venceu a Palma de Ouro em Cannes, apresenta uma elite endinheirada reunida em um luxuoso iate em que não falta comida "chique": vieiras, caviar, os mais caros champagnes.

A comida, de novo, é uma forma de expor o elitismo valorizado na nossa sociedade. A cena do jantar em meio à uma tormenta é muito representativa: mesmo com ânsia e vomitando por todas as partes, os convidados não param de comer.

O diretor faz questão de contrapor as cenas escatológicas com closes de pratos elaborados que saem da cozinha da embarcação.

Östlund diz ter trabalhado com um chef sueco dono de um restaurante com estrelas Michelin para pensar na cena — que teve detalhes de pratos e até texturas e cores de cada um dos pratos.

"'OK, então se você está em um iate e as pessoas estão lutando contra o enjôo, qual seria a pior coisa que você poderia colocar em um prato na frente delas?', perguntamos a ele", contou o diretor à revista "Slate".

Talvez seja uma das mais extremas cenas de vômitos já vistas no cinema, mas o objetivo do diretor é justamente causar um mal-estar na plateia, deixá-la desconfortável ao extremo.

A comida, ele diz, é algo que cria justamente uma conexão — ainda que de repulsa — em todas as pessoas. Como o cinema, é uma linguagem universal, cujos códigos carregam muitos (distintos) sentidos.

Da comida feita para agregar, reunir e criar verdadeiros momentos de prazer hedonista à ideia de que nem todos comemos a mesma coisa e que, por isso, o que comemos pode ser uma forma de falar das nossas diferenças (especialmente sociais), o cinema tem mudado a lente com que filma pratos e receitas.

Se é apenas uma fase em que as críticas sociais parecem borbulhar — e às vezes explodir de tanta pressão — nas telas, ainda é cedo para dizer. Mas talvez nunca mais vejamos a comida nas telas com a mesma inocência de antes.