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Chefs em combustão: 81% têm saúde mental detonada por rotina de abusos

Gabrielli Menezes

Colaboração para Nossa

09/03/2023 04h00

Panela de pressão e ponto de ebulição são termos usados com frequência por funcionários, pesquisas e reportagens para descrever o clima da cozinha profissional. A razão é que se trata de um dia a dia intrinsecamente estressante.

Além de ter sido pensado pelo francês Auguste Escoffier com a hierarquia e rigidez militar do século 19, o ambiente exige força física sob o calor do fogo por longas jornadas em troca de uma remuneração quase sempre baixa.

A matéria especial de Nossa, disponível apenas para assinantes do Uol Prime, mostra que há casos em que a "panela de pressão" estoura, resultando em humilhação e assédio.

São situações, como chef que joga batata frita no cozinheiro porque a receita foi mal executada ou pune a funcionária que se recusa a sair num date, que passam longe do salão onde a clientela consome pratos — e discursos.

"Por que a maneira como o gado é criado pra você importa mais do que como você trata quem está na sua cozinha?", se questiona Carolina, que pediu para ter o nome trocado e hoje está à frente da própria brigada.

As consequências desse cenário tóxico, em diferentes níveis, foram medidas pela pesquisa "No Ponto de Ebulição: Abordando o Bem-estar Mental em Cozinhas Profissionais". Lançado em 2019 pela Nestlé Professional's CHEF, do Reino Unido, o estudo aponta que a saúde mental dos cozinheiros está derretendo:

Oito em cada dez pessoas (81%) que trabalham em cozinha profissional tiveram problemas de saúde em decorrência da carreira".

Rotina de pressão na cozinha compromete a saúde mental dos chefs  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Rotina de pressão na cozinha compromete a saúde mental dos chefs
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Dados em ebulição

Com o intuito de ir além da constatação e colaborar para o bem-estar dos empregados do setor, a pesquisa também focou em descobrir as razões do estresse. Os motivos mais citados foram a escassez de vida pessoal (58%), o orçamento limitado (42%) e as faltas de tempo (43%) e de ver a luz do dia (41%).

Embora os resultados indiquem que a situação chega até a afetar a operação do negócio — 73% relatam faltas por doenças relacionadas ao esgotamento emocional —, 48% dizem não ver ações práticas no trabalho para revertê-la.

Ter mais liberdade para ser criativo melhoraria os níveis de estresse, segundo 87% dos participantes. Sozinha, porém, a mudança não faria diferença, já que 85% também afirmam que a criatividade é sufocada diante das outras pressões da cozinha.

Diretor executivo da instituição Hospitality Action, cujo trabalho é ajudar os que sofrem no setor de hospitalidade, Mark Lewis fala que os resultados coletados pela Nestlé reafirmam que ainda há muito a fazer em relação ao bem-estar mental na cozinha: "Aplaudimos tudo o que aumenta a conscientização e desestigmatiza uma questão que custa muitas vidas em nossa indústria."

Para o chef-consultor da Nestlé Professional, ser chef é um dos trabalhos mais gratificantes que existem, mas tem um preço. "Como seria de esperar, trabalhar em ritmo acelerado em uma cozinha movimentada traz seus desafios, especialmente quando você está colocando seu coração e alma para criar o prato perfeito.

No entanto, esse preço não deveria ser a saúde mental dos chefs e, com muita frequência, hoje em dia, é".

Rotina de abusos é tamanha que parece normalizada pelos ambientes de restaurante - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Rotina de abusos é tamanha que parece normalizada pelos ambientes de restaurante
Imagem: Fernando Moraes/UOL

"Geografia do desvio"

Outro estudo, divulgado em 2022 pelo jornal britânico The Guardian, traz à tona que o isolamento físico da brigada cria um universo moral paralelo no qual o abuso e a violência são a norma.

Realizada por acadêmicos da Universidade Cardiff, do País de Gales, em colaboração com o professor de sociologia do centro culinário francês de Lyon David Courpasson, a pesquisa tem como base entrevistas feitas com 47 profissionais de restaurantes na Europa, Ásia, Austrália e América do Norte.

Durante a apuração, os chefs revelaram que não se comportariam mal ou suportariam abusos fora da cozinha, mas acharam isso "aceitável" dentro dela.

Professor de comportamento organizacional e gestão na Cardiff, Robin Burrow disse que essa separação entre os bastidores do restaurante do serviço à mesa pode ser experimentada como "uma espécie de liberdade do escrutínio para fazer coisas que normalmente não seriam possíveis".

A pesquisa descreve que os layouts da cozinha criam uma "geografia do desvio", termo popular na criminologia. Trata-se de uma realidade que os próprios chefs concordam.

Um falou que o isolamento cria um pano de fundo onde se pode "brincar" e se comportar mal. Outro admitiu que seguiu um cozinheiro júnior até uma sala longe da cozinha principal e o espancou. A razão: atraso persistente.