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'Argentina, 1985': como Buenos Aires preserva memória da ditadura

O Palácio da Justiça, em Buenos Aires, onde se passa boa parte da ação do filme - Divulgação
O Palácio da Justiça, em Buenos Aires, onde se passa boa parte da ação do filme Imagem: Divulgação

Luciana Taddeo

Colaboração para Nossa, em Buenos Aires (Argentina)

12/03/2023 04h00

Se a intenção da ditadura argentina (1976-1983) era acabar com os divergentes, com um plano de extermínio que incluiu assassinatos, tortura, desaparecimento de milhares de pessoas e roubo de bebês, as organizações de direitos humanos do país trabalharam por décadas não somente para que esses crimes fossem julgados, mas também para que sua memória fosse preservada, para que eles nunca mais voltassem a ocorrer.

Com o interesse alimentado pelo filme "Argentina, 1985", que mostrou como os argentinos levaram ao banco dos réus representantes das primeiras cúpulas militares da ditadura, o visitante pode fazer, em Buenos Aires, uma imersão na história desses anos de repressão e da luta por justiça após o retorno da democracia.

O percurso ajuda, quem procura entender como os argentinos mantiveram vivas as recordações dos crimes cometidos naqueles anos, e mantendo provas acessíveis com a conservação de ex-Centros Clandestinos de Prisão (ex-CCD) e convida à reflexão.

Nossa elaborou um roteiro com pontos para visitar na capital argentina para conhecer o passado que deixou um saldo estimado de 30 mil mortos e desaparecidos, segundo organizações de direitos humanos.

Ricardo Darín, como o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, como Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985" - Divulgação - Divulgação
Ricardo Darín, como o procurador Strassera e Peter Lanzani, seu adjunto, como Luis Moreno Ocampo em "Argentina 1985"
Imagem: Divulgação

Também indica onde fica o tribunal e como agendar uma visita para percorrer os corredores do Palácio de Justiça onde, quase 40 anos depois, o ator argentino Ricardo Darín interpreta o promotor Julio Strassera, responsável pela acusação dos militares.

ESMA - Escola Superior Mecânica da Armada

A Escola Superio Mecânica Armada - Divulgação - Divulgação
A Escola Superio Mecânica Armada
Imagem: Divulgação

A Escola Superior Mecânica da Armada, é um enorme complexo militar no extremo oeste da cidade de Buenos Aires, no bairro de Núñez, que em 2004 foi convertido em um centro de memória ocupado por diferentes organizações de luta pelos direitos humanos, é visita obrigatória para quem quer entender o passado de terror promovido pela ditadura argentina.

De frente para a elegante Avenida Libertador, o local foi o principal centro de prisões clandestinas, tortura e assassinatos da capital. De lá, saíam ônibus com presos dopados rumo ao Aeroparque e outros aeroportos da região para que fossem arremessados de avião no Rio da Prata.

Este método de assassinato ficou conhecido como "voos da morte".

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Fachada da ESMA
Imagem: Luciana Taddeo

Um museu foi inaugurado em 2015, no edifício que funcionava como o "Cassino de oficiais", utilizado como centro clandestino de prisão, enquanto os demais edifícios do complexo mantinham funcionamento militar para aparentar normalidade.

É possível visitar os ambientes onde os presos eram torturados logo na chegada, a estrutura do elevador que os militares esconderam durante a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao país para averiguar violações aos Direitos Humanos em 1979, a cozinha do local, onde são realizadas mostras.

Uma das partes mais chocantes da visita é o percurso pelos setores conhecidos como "capucha" e "capuchita". Os nomes, que significam "capuz" e "capuzinho" em espanhol, se referem aos locais onde os presos dormiam e eram colocados 24 horas por dia quando não estavam em sessões de tortura.

Eles eram obrigados a ficarem deitados, algemados, com capuz no rosto e fazer necessidades em baldes. Ao longo do trajeto, são projetados trechos do julgamento de 1985 onde vítimas descrevem como era estar preso neste local.

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São várias as instalações que podem ser visitadas na ESMA
Imagem: Luciana Taddeo

Outro ponto marcante da visita é o contato com locais onde bebês nasceram. A maioria, depois, foi roubada de suas mães e apropriadas ilegalmente por militares ou entregues a outras famílias, e muitas das grávidas eram assassinadas após o parto. As Avós da Praça de Maio, que dedicaram a vida à busca de bebês desaparecidos, encontraram, até o fechamento deste guia, 132 netos, dos cerca de 500 que calculam terem sido roubados pela ditadura.

Como muitos julgamentos são realizados, o edifício, assim como outros ex-CCD, é utilizado como prova, e por isso está com as paredes e objetos do jeito que foi entregue às organizações, e somente pode ser reformado ou ter paredes e partes reparadas após autorização judicial.

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ESMA, em Buenos Aires
Imagem: Luciana Taddeo

O museu da ESMA abre ao público aos sábados e domingos, de 10 a 17h (pode entrar até 16h), sem necessidade de agendamento prévio. O visitante pode, com a leitura de código QRs, acessar uma guia por áudio em português para percorrer o museu.

Endereço: Avenida del Libertador 8151 / 8571

Palácio de Justiça

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Palácio também é conhecido como "Tribunales"
Imagem: Divulgação

Conhecido na Argentina como "Tribunales", o edifício onde funciona a Suprema Corte de Justiça e está a sala onde foi realizado o julgamento das cúpulas militares em 1985 pode ser visitado somente por grupos, principalmente acadêmicos e institucionais, que solicitem a visita com muita antecipação pelo e-mail ceremonial@csjn.gov.ar.

Pelos corredores deste palácio não somente atuou Darín como o promotor do Julgamento do retorno a democracia, como também foram gravadas cenas de outros filmes de renome do cinema argentino, como O Segredo dos seus Olhos, que deu para a Argentina o segundo Oscar de filme estrangeiro em 2010 (o primeiro foi A História Oficial, justamente sobre a ditadura).

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Palácio é um dos principais cenários mostrados no filme
Imagem: Divulgação

O trajeto passa pela biblioteca, pela exibição de expedientes judiciais históricos, salas de audiência, e termina no hoje chamado de "Salão de Direitos Humanos", com a projeção do fragmento final das alegações do promotor Julio Strassera (protagonizado no filme pelo ator Ricardo Darín) no julgamento das cúpulas militares de 1985, quando ele afirma "quero utilizar uma frase que não me pertence, porque já pertence a todo o povo argentino: Senhores Juízes, nunca mais!".

Endereço: Talcahuano 550

Ex-Clube Atlético

Localizado sob um viaduto, este ex-centro clandestino de prisão funcionou no portão de uma sede da Polícia Federal Argentina. Calcula-se que 1.500 pessoas tenham sido presas no local durante a ditadura, e a maioria continua desaparecida. Não há, no entanto, informações sobre assassinatos no local.

De longe, é possível identificar uma grande silhueta feita em homenagem aos desaparecidos - também identificados com fotografias lá expostas - que passaram pelo local. O edifício acabou demolido para a construção do viaduto. Escavações iniciadas há 20 anos permitiram identificar ambientes e objetos tanto da Polícia Federal como relativos ao ex-centro clandestino, que podem ser observados na visita.

Declarado lugar histórico nacional desde 2014, o Ex-Clube Atlético pode ser visitado de segunda a sexta, das 10h às 16h. O percurso dura cerca de uma hora e meia. É necessário programar a visita previamente pelo e-mail proyectoclubatletico@gmail.com.

Endereço: Avenida Paseo Colón 1266

Praça de Maio

Praça de Maio - Luciana Taddeo - Luciana Taddeo
Praça de Maio
Imagem: Luciana Taddeo

Nem só de protestos políticos vive a Praça de Maio, ícone portenho por estar diante da Casa Rosada, sede do governo argentino e ser palco de enormes protestos. Desde 1977, mães que denunciavam o desaparecimento de seus filhos começaram a marchar ao redor da pirâmide de maio, no centro da praça, com lenços brancos na cabeça, que viraram símbolo da luta.

No chão da praça, há desenhos dos lenços ao redor da pirâmide. Ao lado de onde as mães marcham, está enterrada Azucena Villaflor, fundadora do grupo, também assassinada pela ditadura.

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As mães que também são retratadas no longa
Imagem: Luciana Taddeo

Desde a pandemia, quando a tradição de dar volta na praça foi momentaneamente interrompida, e com a morte de muitas delas, há cada vez menos "madres" participando das voltas na praça. No entanto, sempre há ativistas que se juntam ao movimento.

São dois grupos diferentes marchando em lados opostos da pirâmide: o da Associação das Mães da Praça de Maio, com faixas e cantos de teor político e em geral em apoio ao kirchnerismo e outro das Mães da Praça de Maio — Linha Fundadora, que acompanha a leitura de uma lista com diversos nomes de desaparecidos, e após cada um deles, entoa o coro "presente".

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Imagem: Luciana Taddeo

As voltas na praça realizadas há décadas por essas valentes mulheres que lutaram pela aparição e depois por justiça pela morte de seus filhos, acontecem todas as quintas-feiras às 15h30. Minutos antes, turistas já começam a se reunir no local para acompanhar o momento e comprar suvenires na barraquinha montada pela associação, que vende de livros a bonequinhas representando as Mães da Praça de Maio.

Endereço: Plaza de Mayo

Ex-CCD Olimpo

Outro ex-Centro Clandestino de prisão, tortura e assassinatos da ditadura argentina, o "Olimpo" também era uma divisião da Polícia Federal Argentina, mas no bairro de Floresta, mais distante do centro de Buenos Aires. Calcula-se que cerca de 500 pessoas, a maior parte delas ainda desaparecidas, tenham ficado sequestradas no local entre 1978 e 1979.

Após o retorno da democracia, em 1983, foram anos de muitos protestos de organizações para que o edifício finalmente passasse, 2005, das mãos da polícia para transformar-se em um "local de recuperação da memória histórica dos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado e de promocão dos Direitos Humanos e valores democráticos".

Visitas guiadas podem ser agendadas pelo e-mail visitas.exolimpo@gmail.com ou pelo formulário de contato do site: https://www.exccdolimpo.org.ar/visitanos

Endereço: Coronel Ramón L. Falcón 4250

Lajotas pela Memória

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Imagem: Luciana Taddeo

Basta caminhar atento para encontrar as coloridas "baldosas por la memoria" ou "lajotas pela memória", que indicam onde ativistas e defensores dos direitos humanos foram assassinados, vistos pela última vez com vida ou moravam e trabalhavam durante a ditadura militar.

Confeccionadas pelo coletivo Barrios x Memoria y Justicia desde 2005, elas estão espalhadas pelas calçadas de Buenos Aires e já passam de 1200 somente na capital.

Endereço: consulte no mapa a mais próxima https://buenosaires.gob.ar/memoria-ba-mapa-interactivo-huellas-de-la-memoria

Parque de la Memoria

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Parque de la Memoria
Imagem: Divulgação

A beira do Rio da Prata, onde eram arremessados presos políticos como parte do plano de extermínio da ditadura, o visitante pode percorrer o Parque da Memória, que consiste em uma imensa exposição a céu aberto em homenagem as vítimas do terrorismo de Estado que assassinou e desapareceu com cerca de 30 mil pessoas, de acordo com estimativas de direitos humanos do país.

Parque de la memoria divulgacao_30mil4 - Argentina 1985 - Ditadura - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Com entrada livre e gratuita, este parque de 14 hectares, conta com diversas esculturas escolhidas em um concurso em que centenas de artistas do mundo inteiro se candidataram para homenagear as vítimas da repressão. Outras ainda serão construídas. Entre as interessantes obras permanentes estão o "Monumento ao Escape", do norte-americano Dennis Oppenheim, que parecem casas equilibradas, mas que possuem grades nas janelas; a "30.000", do argentino Nicolás Guagnini, com o retrato do pai do artista (que desapareceu em 1977) em 25 barras de aço, mas conforme o espectador anda, o rosto desaparece; e a "Reconstrução do retrato de Pablo Míguez", da argentina Claudia Fontes, que consiste em uma escultura de aço, que flutua no Rio da Prata, de um adolescente desaparecido de apenas 14 anos.

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Uma das obras em exibição no parque
Imagem: Divulgação

As obras se somam ao enorme Monumento as Vítimas do Terrorismo de Estado que contém os nomes de todos os desaparecidos e assassinados pela ditadura argentina. São quatro muros enormes de concreto com 30 mil placas, com cerca de 9 mil nomes separados pelo ano de morte ou em que foram vistos pela última vez, com idade e — não deixe de reparar — identificação das mulheres que estavam grávidas.

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Imagem: Divulgação

O local também conta com uma sala de exposições e uma Base de Dados de consulta pública, permanentemente atualizada com informações em texto e fotos sobre a vida e dados de desaparecimento ou morte dos assassinados pela ditadura.

Endereço: Av. Costanera Norte Rafael Obligado 6745