Napoleão, Simon Bolívar e dor de barriga: a origem da bebida angostura
Poucos acontecimentos da história da humanidade tiveram impactos tão grandes, duradouros e globais como as Guerras Napoleônicas. A expansão continental dos Estados Unidos, a colonização britânica da África do Sul e a fundação de Cingapura estão entre os fatos ligados diretamente a essa conturbada fase da história europeia, em que um punhado de reinos se aliou contra o imperialismo francês de Napoleão Bonaparte, no começo do século 19.
A principal transformação no mapa-múndi aconteceu na América Latina. Com a Espanha e Portugal invadidos pela França, as colônias dos dois reinos trataram de lutar e conquistar sua independência.
Milhares de europeus participaram ativamente dos conflitos contra Napoleão e das lutas pela liberdade na América. No meio disso, um deles acabou fazendo uma contribuição enorme para a coquetelaria.
O jovem médico alemão Johann Siegert serviu na infantaria da Prússia Oriental contra as tropas napoleônicas. Em 1815, tratou muitos dos 50 mil prussianos que participaram da Batalha de Waterloo, que aniquilou de vez a França. Ganhou medalha por seus feitos e, cinco anos depois, zarpou para a Venezuela.
Ao lado de outros prussianos e ingleses, Siegert engrossou a luta por liberdade liderada por Simon Bolívar. O médico cruzou o Atlântico e subiu o mítico rio Orinoco até chegar ao quartel-general de Bolívar, em uma cidade chamada Angostura. No ano anterior, um congresso reunido no município estabeleceu a criação da Grã-Colômbia, país independente que reuniria, em seus dez anos de existência, Venezuela, Equador, Panamá e, claro, Colômbia.
Siegert atuou na área até 1859. Naquela época, Bolívar já tinha morrido, toda a América do Sul conquistara a independência e Angostura tinha outro nome, Ciudad Bolívar.
Nasce o tônico (e bitter)
Ao longo dessas décadas, Siegert aprimorou seu talento na manipulação de ervas medicinais. Muitas delas ele aprendeu com os indígenas. Outras eram velhas conhecidas dos europeus, como a genciana, comum para aplacar problemas digestivos.
Nos anos 1830, seu tônico de Angostura já era conhecido. Nos 1850, os filhos começaram a ajudar nos negócios e, nos 1870, a instabilidade política na Venezuela motivou a transferência da empresa para a ilha de Trinidad, então uma colônia britânica.
A partir dessa ilha caribenha, a angostura, como a bebida passou a ser conhecida, conquistou o mercado britânico e, depois, os de outros países, tornando-se um dos bitters mais famosos do mundo.
Bitter é um aperitivo alcoólico amargo feito de ervas. A Casa Angostura manteve o nome de sua cidade de origem, apesar de ser uma empresa de Trinidad e Tobago há 150 anos — e apesar de não ter casca de angostura na fórmula: além da cidade histórica (que mudou de nome) e do famoso bitter, angostura também é o nome de uma árvore típica da região.
Só para complicar um pouco mais, outras marcas de angostura usam a casca dessa árvore. Mas a angostura original, reconhecida pelo seu rótulo grande demais para a garrafinha, não leva o ingrediente.
A fórmula, em todo caso, é um mistério. Ou, como dizia um livro de receitas de 1900,
é realmente o 'segredo mais bem guardado do mundo', conhecido apenas por sete pessoas, todas membros da família Siegert. Esse famoso produto, usado em todas as nações civilizadas, é um dos fundamentos para uma boa vida".
Do drinque à salada
Um fundamento que conseguiu tal status meio que sem querer. Charles Baker Jr., em "The Gentleman's Companion" (1939), lembra que a bebida foi criada, afinal de contas, por um médico. Servia como "um tônico simples para evitar febres, miasmas e uma variedade de males", escreveu. "Mas o destino decretou que o bitters inventados para a saúde não deveriam ser apenas estimulantes de apetites cansados, mas um ingrediente inestimável em todo tipo de coquetéis."
Assim, a angostura se tornou um coringa da coquetelaria clássica. O site oficial lista 32 receitas. Já o especializado "Difford's Guide" tem mais de 500 drinques que levam angostura.
É tanta versatilidade que nem a Lei Seca americana (1920-33) foi um empecilho. A Casa Angostura publicou, poucos meses após o fim da proibição, um livro que mostra como era a vida na cozinha naquele tempo (pelo menos dentro das margens da lei).
"Angostura - Famous for Foods" tem dezenas de receitas de sobremesas, bolos, carnes, massas, peixes, molhos, sopas e aperitivos em geral. Algumas delas chanceladas por chefs de hotéis como Ritz-Carlton de Boston, Waldorf-Astoria de Nova York e o Nacional, da Havana pré-Revolução Cubana.
"Adicionar angostura deu um novo tempero às minhas saladas", declarou uma leitora do guia. Então, se pintar dúvida de qual drinque preparar no seu bar, uma saladinha pode vir a calhar.
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