Entre salames e pastramis: charcutaria autoral é tendência sem volta
Não é de hoje que a charcutaria artesanal, a arte de produção de embutidos e similares ao largo do mainstream industrial, avança em protagonismo.
Tendência em vários segmentos da gastronomia, a dita "charcutaria contemporânea" (que quase obrigatoriamente revisita a tradição secular do quesito) reúne inventividade e sabor em interpretações das diferentes escolas de embutidos e afins. Afinal, charcuteiro — por que não? — também é chef.
Ao lado dos pães
Ousada ourivesaria charcuteira, a Antica Salumeria, de Pirituba, São Paulo, acaba de abrir um endereço no bairro dos Jardins. Lá, além do naipe de embutidos, brilham também pães artesanais assados na própria casa e itens como o crustoli, uma massinha frita doce.
Centrada na escola oriundi de embutidos suínos, a assinatura da casa é o uso parcimonioso de condimentos: páprica, erva-doce, pimenta do reino, etc. Pastrami, bacon, pancetta, lombos saborizados (com limão siciliano ou laranja),copa, paleta de linguiças variadas, peito de pato, etc. Licença poética à escandinava, o gravlax (salmão curado) é um achado.
Vamos combinar: uma padaria que chancele seu próprio repertório charcuteiro é algo raro, raríssimo, até. Mas é essa a receita dos sócios Martin Jirousek e Fábio Pasquale na Le Blé Casa de Pães, com dois endereços na capital paulista.
Além da panificação, tudo o que pode entremear duas fatias dos pães é produzido lá mesmo. Uma verdadeira Disney dos embutidos: presunto, mortadela, salames, pastrami, bacon e alguns eteceteras, receitas próprias, de vigoroso frescor.
Salames inovadores
"Charcutaria contemporânea de família". Egressa do mercado corporativo, assim a chef charcuteira Milena Rossi, da Salumeria Mayer, define o atelier que pilota a quatro mãos com o marido, Rudolf, cujo sobrenome batiza a empreitada.
Tudo começou anos atrás, quando receitas próprias, aprovadas entre amigos, valeram-lhes elogios e muitas encomendas e convites, para as feirinhas gastronômicas de então. Na prática, um combo de receitas caseiras versus técnica apurada, a serviço de sabores clássicos e, em alguns casos, sazonais.
De imediata aceitação — no atual portfolio de clientes constam empórios e delicatessens exponenciais —, a aposta recai em embutidos defumados de longa maturação, que hoje compõem perto de 95% da produção da grife — notadamente os salames de sabores inovadores.
Estão lá também os embutidos-patês, caso do metwurtst alemão e do picante nduia, esse, italiano. E ainda presunto copa, linguiça bovina de gado Red Angus, salame de cordeiro, etc.
Com foco espartano na procedência de seus insumos, Milena garante: toda a matéria-prima da atual linha de produção é certificada.
Salame de polvo
Primor de intuição culinária, há décadas o salame de polvo é hit na Cantina do Julius, estabelecimento simples do bairro Roma, Cidade Baixa, Salvador.
De coloração e textura similares aos salames tradicionais, a iguaria cilíndrica, de pouco mais de um metro de comprimento por boa espessura, deixa transparecer em seu interior levemente esbranquiçado as guelras do molusco.
Fatiado à carpaccio, regada com azeite e especiarias, o salame marítimo é um dos carros-chefes da casa e "imã" que atrai parte do altíssimo clero do empresariado soteropolitano, frequentador do simpático boteco.
Uma, duas... 16 tipos de linguiças
Engenheiro químico de origem, a saga de Fábio Alves, da Chacurtataria Specialli com a charcutaria já remonta há mais de duas décadas.
Quando trabalhava em uma empresa de temperos no interior paulista, paralelamente o auto-definido "transformador de carne em arte" já dava seus pulos charcuteiros, mas apenas como hobbie.
Há cinco anos, por insistência de amigos e conhecidos, topou empenhar-se mais seriamente na missão — nascia a Specialli. Hoje, Alves fornece para grandes chefs e conhecidos restaurantes, além de hortifrútis especiais.
Seu carro-chefe são dezesseis diferentes tipos de linguiças (de requeijão com cerveja e bacon; linguiça tex-mex com pimenta Jalapeño, etc), além da linha de salsichas de DNA teutônico. E a linguiça de cordeiro. E o bacon. É ele mesmo o autor de todas as receitas. "Minha maior preocupação é o equilíbrio de sabores. Isso não pode falhar", ensina.
Terrines e patês
Autodidata, Ricardo Marques, da Richie's Deli, residiu na Alemanha, com direito a frequentes visitas a Bélgica e França. Natural, pois, que se apaixonasse por embutidos.
Há sete anos, na volta ao Brasil, começou a desenvolver receitas e presentear amigos. Tais presentes logo viraram encomendas — um confit de pato aqui, um Beef Wellington ali."Aí a brincadeira virou negócio", relembra.
Sua escola, ele afirma, é a centro-europeia, o que inclui, entre outros itens, terrines e patês, etc tecnicamente, também considerados charcutaria. Idem para confits e o famoso Beef Wellington, este, preparado envolto em massa folhada e a seguir assado.
De seus eflúvios franco-germânicos remontam alguns dos best sellers da casa: terrines variadas (de pato com pistache, por exemplo); patê de fígado de galinha ao vinho do Porto; patés en croute (com massa em volta, de coelho, galinha d'angola, codorna, foie gras, vitela, porco), rillettes, pasta suína para passar no pão; e ainda jambon blanc (presunto curado em caldo e cozido), lachsschinken (lombo curado a seco e defumado a frio), salsichas bratwurst (branca, de porco, com tempero herbal) e boudin blanc (salsicha branca francesa com leite e pedacinhos de cogumelos porcini secos), etc.
Chacurtaria sustentável
Calabrês há anos radicado no Brasil, o chef italiano Domenico Trocino até tentou, mas não conseguiu fugir das garras do DNA da família. Afinal, não é todo mundo que descende de três gerações anteriores de charcuteiros na Itália.
Mias: além de charcuteiros, os pais tinham uma padaria. De quebra, ele mesmo enamorou-se incontrolavelmente pelos vinhos, comidas e embutidos da Toscana.
Daí que tantos imputs, juntos, culminaram no Espaço Essenza, vinícola-butique e restaurante inaugurado no segundo semestre de 2020, em plena pandemia, nos alpes de Santo Antônio do Pinhal (SP).
Lá, Trocino não só cultua os próprios rótulos de vinhos, mas ainda produz azeite, frutas e hortaliças — e também embutidos do mais alto padrão. "Uma autêntica ecogastronomia", ele define, com operação e produtos 100% artesanais e quase que totalmente sustentáveis, garante o também cozinheiro, com passagens por bons restaurantes de Bolonha, no passado.
Curados a partir de suas receitas no próprio Espaço Essenza, a paleta de sabores inclui, entre outros manás, o nduía, creme charcuteiro calabrês; presunto speck, típico do norte da Itália; linguiça calabresa (lógico!), levemente apimentada; lardo, toucinho obtido da camada de gordura suína sob a pela; e papada guanciale, defumado semelhante ao bacon, mais fino e de sabor mais forte (por comportar muitos temperos no preparo).
Rei do presunto cru
Responsável pelos elogiados rótulos da consagrada vinícola Luiz Argenta, como bom descendente de italianos o enólogo Edegar Scortegagna, de Flores da Cunha/RS, cedo apaixonou-se também pela salumeria e embutidos.
Mais de duas décadas atrás, partiu para estudar enologia em Verona, viagem que, afirma, "norteou sua vida". Não só pelo know-how vitivinícolo.
Lá, vi pela primeira vez uns pernis pendurados, maturando. Voltei ao Brasil decidido que ia fazer aquilo".
Pesquisou e pesquisou, curando suas primeiras produções literalmente no porão da casa do avô. Em 2004, voltou à Itália, ocasião em que especializou-se ainda mais em ambos os fronts: vinhos e charcutaria.
Ainda na Itália, conheceu um dos donos da Luiz Argente. Convite feito, Scortegagna já voltou ao Rio Grande como titular da produção da vinícola.
Paralelamente, após quase uma década de estudos conseguiu estabelecer uma estirpe de presunto cru que é referência internacional.
Para lançar a Gran Nero, alinhou os saberes italianos ao grande know-how espanhol no quesito, chegando à raça suína perfeita, adequada a seu projeto.
Após mínimos 12 meses de salga, cura e maturação, o resultado é um presunto cru envolto em uma densa camada de gordura externa, e marmoreio na carne de sabor único e marcante.
À francesa
Natural de Nantes, na França, mas radicado há décadas no Brasil, atualmente o charcuteiro autodidata Charles Duboc, do À Table Charcutaria, é adepto da escola francesa da chamada charcuterie pâtissière, vertente ainda muito pouco difundida no país na qual os embutidos são envoltos por uma massa, formando uma espécie de casca.
Até a pandemia, atendia exclusivamente restaurantes, com uma linha mais básica de receitas de sua própria lavra: linguiças, salsichas, bacon, pastrami — inclusive salsichas bovinas defumadas.
O lockdown das casas obrigou-o a repensar estratégias com foco no cliente final. Foi quando as terrines e pates en croute lhe trouxeram maior visibilidade, "muito por conta da surpresa das pessoas, que não conheciam esses sabores e texturas", comenta Duboc.
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