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Ele fugiu da guerra no Vietnã, foi resgatado no mar e hoje é chef em SP

 O chef Vo Van Phuoc e sua esposa, Nguyen Thi Kim Dung, com a foto do barco no qual foram resgatados após fugirem do Vietnã - Eduardo Krajan
O chef Vo Van Phuoc e sua esposa, Nguyen Thi Kim Dung, com a foto do barco no qual foram resgatados após fugirem do Vietnã Imagem: Eduardo Krajan

Glau Gasparetto

Colaboração para Nossa

24/03/2023 04h00

Pho Bo, o prato-símbolo do Vietnã, exige paciência para o preparo. São, pelo menos, dez horas apenas para cozinhar o caldo à base de carne que sintetiza os instigantes sabores da cozinha daquele país (veja a receita mais adiante nesta reportagem).

Paciência também não falta na vida do chef Vo Van Phuoc, nome por trás do restaurante Miss Saigon, em São Paulo. Há quase cinco décadas, depois de duas tentativas que acabaram em prisão, ele conseguiu fugir do Vietnã e da guerra. Queria chegar aos Estados Unidos, mas foi resgatado em alto-mar e veio parar no Brasil.

Coincidências do destino, no mesmo barco estava Nguyen Thi Kim Dung, que se tornou sua esposa tão logo colocaram os pés no Ocidente. A história pode soar romântica, mas é tão cheia de reveses que alimentaria um bom roteiro dramático.

Nguyen, 64 anos, nasceu em Ho Chi Minh (até 1975 chamada de Saigon), no sul do país. Vo Van, 65 anos, é de Qui Nhon, cidade litorânea mais ao centro. A jornada que os trouxe para a América do Sul não foi o primeiro encontro dos dois. Ambos já tinham tentado escapar em um mesmo grupo da convocação para a guerra que o Vietnã travava com o vizinho Camboja.

Naquela época, todos os jovens eram convocados para lutar. Muitos amigos do casal morreram em campo. O confronto armado entre os dois países ocorreu entre dezembro de 1978 e janeiro de 1979, mas desde 1975 as investidas já movimentavam as fronteiras.

No restaurante Miss Saigon, o quadro com o resgate no navio preserva esta história do casal - Eduardo Krajan - Eduardo Krajan
No restaurante Miss Saigon, o quadro com o resgate no navio preserva esta história do casal
Imagem: Eduardo Krajan

Entre a guerra e a sobrevivência

"A gente tinha duas opções: ir para a guerra e não ter chance de viver ou fugir e ter um mínimo de chance de sobreviver", lembra a mulher, em português pausado.

Era morrer na guerra ou, talvez, morrer no mar"

Em 1979, a empreitada deu certo.

Muitos meses antes, os dois tinham se conhecido na primeira vez que tentaram deixar o Vietnã. Não deu certo: o grupo que integravam foi flagrado pela polícia vietnamita — sempre atrás de desertores —, quando tentava chegar ao barco que os levaria dali.

Como consequência do ato, o rapaz ficou preso por um ano e a moça, por uma semana. Livre, ele tentou outra vez deixar o país por via marítima e foi detido por mais um ano e meio. Quando tinha 21, na terceira tentativa, aquela colega estava entre o novo grupo que tentava deixar o país.

Ao lado de outras 22 pessoas, incluindo crianças e um bebê, eles finalmente alcançaram mar aberto, apenas com as roupas do corpo. Mantimentos, bagagem e outras provisões ficaram para trás, pois tiveram que correr da polícia para alcançar o barco.

Detalhe do barco onde ficaram por três dias e quatro noite à deriva - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Detalhe do barco onde ficaram por três dias e quatro noite à deriva
Imagem: Arquivo pessoal

Foram três dias e quatro noites no mar, encharcados, sem comer ou beber, e boa parte do tempo à deriva, já que o motor do transporte parou de funcionar. "A gente já não pensava que conseguiria; só pensava que todo mundo iria morrer", lembra-se Nguyen, que assumiu o nome Sônia quando passou a residir no Brasil. O marido também trocou Vo Van por Fu.

Desde o início, o desejo era serem encontrados por algum navio estrangeiro, de preferência americano. Só a terceira grande embarcação que avistaram se dispôs a resgatá-los — justamente um petroleiro de origem brasileira.

O resgate comandado pelo capitão Charles França de Araújo e Silva no navio José Bonifácio não foi tão fácil. Com o salvamento, automaticamente o Brasil se tornou responsável pela turma fugitiva.

Depois de uma semana junto da tripulação, os sobreviventes do barco foram deixados em Singapura, enquanto o navio da Petrobras seguiu seu roteiro para finalizar a entrega de petróleo. Na cidade-estado mais rica do sudeste asiático, a turma permaneceu por três meses em um campo de refugiados — a maioria deles, vietnamitas — mantido pela ONU. Foi ali que Sônia e Fu começaram a namorar.

Nguyen sendo resgatada pelo navio brasileiro - Divulgação - Divulgação
Nguyen sendo resgatada pelo navio brasileiro
Imagem: Divulgação

Sem falar um "a" em português

Enviados para o Brasil de avião, aterrissaram em Viracopos, aeroporto em Campinas. Chegaram numa manhã de setembro, falando nada em português e com uma pequena ajuda financeira da ONU.

Eu vestia só shorts e camiseta. Estava frio, muito frio", lembra-se Fu, à época, com 21 anos.

Como parte da ajuda que recebeu, ele foi contratado para trabalhar na Volkswagen, em São Bernardo do Campo. Ao lado de Sônia, estabeleceu-se no Ipiranga, bairro onde viveu por muitos anos. Durante três meses, eles estudaram a língua portuguesa com um professor contratado pela ONU.

Na fábrica de automóveis, Fu ajudava a carregar caixas pesadas, de ferragens, mas pediu demissão seis meses para abrir uma oficina de costura — queria fazer roupa para os coreanos.

Um ano mais tarde, montou sua fábrica de bolsas, ainda na zona sul da capital, empreendimento que comandou até 2012. Obrigado a fechar as portas pela concorrência chinesa, decidiu investir em restaurante, atendendo ao incentivo dos filhos e dos amigos.

O casal em sua fábrica de bolsas, em São Paulo - Divulgação - Divulgação
O casal em sua antiga fábrica de bolsas, em São Paulo
Imagem: Divulgação

O chef Fu nasceu como caçula entre nove irmãos, em uma família que vendia artigos para pesca e equipamentos para barco. Sônia também tem 8 irmãos e irmãs e até tentou empreender ao lado de uma delas, trabalhando com salão de beleza, mas não teve sucesso.

Da relação dos dois, nasceram três filhos: Pascoal, 43 anos, que trabalha com marketing; Jimmy, 42 anos, que abriu o próprio restaurante (Little Saigon) depois de anos ajudando os pais; e Norman, 28, chef de cozinha que divide com Fu a responsabilidade pelas duas unidades do Miss Saigon — uma no bairro Nova Conceição e outra e Pinheiros.

A jornada gastronômica

Na casa de Fu e Sônia não faltavam festas com amigos. Os colegas dos filhos também frequentavam o ambiente e se deliciavam com os pratos preparados pelo patriarca.

Na verdade, meus amigos pediam para ir lá nos fins de semana, só para comer a comida do meu pai", ri Norman

Até os churrascos que Fu organizava deixavam os visitantes salivando — em vez de apenas sal grosso, a carne recebia pelo menos uns dez tipos de tempero, como alho, pimentas, canela, aniz-estrelado, açúcar e até molho de peixe em conserva.

Mesmo antes de abrir o restaurante, a culinária do casal já era reconhecida por amigos e familiares - Divulgação - Divulgação
Mesmo antes de abrir o restaurante, o casal já era conhecido pelo bem receber e pela culinária
Imagem: Divulgação

Convencido de que poderia se dar bem na área gastronômica, Fu, ao lado de Sônia e do filho mais novo, herdeiro dos seus dotes na cozinha, embarcou numa viagem de quase um ano pelos Estados Unidos, Alemanha e Vietnã, visitando amigos e familiares com negócios similares nos três países, a fim de aprender tudo o que precisava para abrir um espaço no Brasil.

De volta, Norman começou a faculdade de gastronomia em 2013, formando-se chef dois anos depois, enquanto Fu abriu o primeiro Miss Saigon.

Sabor adaptado

Apesar dos 65 anos, o chef vietnamita não sai da cozinha — ele comanda a produção diária do restaurante em Pinheiros, enquanto o filho cuida da outra unidade, além de coordenarem a equipe de dez funcionários em cada estabelecimento.

Fu e o filho Norman, herdeiro das tradições culinárias - Divulgação - Divulgação
Fu e o filho Norman, herdeiro das tradições culinárias
Imagem: Divulgação

Fu é do tipo perfeccionista — se o caldo do Pho Bo não estiver como deseja, descarta os 30 litros que produz quase diariamente sem pensar duas vezes. É ele quem dá o 'ok' final no cardápio do Miss Saigon, atualmente com cerca de 40 pratos, alguns típicos da culinária do Sul do Vietnã, outros adaptados das cozinhas da China, Japão, Tailândia e Mongólia.

Reflexo da colonização da França, a comida servida em São Paulo não precisou de grandes adaptações. Só a picância foi minimizada tanto quanto possível.

Em alguns, bem picantes, a pimenta é servida à parte", conta Fu.

O restaurante tem pratos da culinária do Sul do Vietnã, além de outros adaptados das cozinhas da China, Japão, Tailândia e Mongólia - Eduardo Krajan - Eduardo Krajan
O restaurante tem pratos da culinária do Sul do Vietnã, além de outros adaptados das cozinhas da China, Japão, Tailândia e Mongólia
Imagem: Eduardo Krajan

Aromas e sabores

A verdade é que a gastronomia vietnamista dão um nó na cabeça de qualquer ocidental pouco acostumado aos pratos preparados pelas mãos de quem nasceu e viveu por lá. Os sabores são complexos, graças à quantidade de temperos e especiarias combinada para proporcionar uma experiência sensorial à mesa.

O Pho, por exemplo, é uma refeição comum naquele país, servida em diferentes horários do dia, do café da manhã à tarde da noite. No vietnamita original, sua grafia é Pho bò (a pronúncia é algo como "fuh bóóó"), em que "Pho'" significa noodle de arroz e "bò", carne.

O Pho é um prato tradicional, servido desde o café da manhã ao jantar no Vietnã - Eduardo Krajan - Eduardo Krajan
O Pho é um prato tradicional, servido desde o café da manhã ao jantar no Vietnã
Imagem: Eduardo Krajan

A composição do prato muda de acordo com a parte do país. O sabor e até os ingredientes podem ser diferentes se o Pho for consumido no Norte ou no Sul. Não só isso: as alterações também são identificadas de família para família, cada uma dando seu toque pessoal.

O caldo é diferente, a maneira de servir pode ser diferente", comenta Norman.

No Miss Saigon, eles adotaram a versão sulista do prato, já que todo o cardápio é focado na região que teve colonização francesa. Apesar de estar no menu desde o início das atividades, o Pho é daquelas opções que sempre surpreendem. Clique na imagem abaixo e veja a receita completa:

Poucas pessoas conheciam nossa comida. Quando começamos, há dez anos, eram vendidos uns 20 pratos de Pho por semana. Hoje, vendemos de 20 a 30 por dia, em cada um dos restaurantes", empolga-se Fu.

O prato que marcou a infância dele e da esposa Sônia e também é a comida afetiva do filho Norman recebe tantas justificativas quanto os sabores que apresenta. Os pais lembram que, quando crianças, não comiam com o Pho Bo com tanta frequência, pois a situação financeira não permitia — no período da guerra, a comida era escassa e, às vezes, se limitava ao arroz. "Mas quando a gente ficava doente, era o que tomava para melhorar", lembra o pai.

Norman, o filho, exalta sua versatilidade:

É um prato que você come se está mal, se está de ressaca, se está só querendo uma comida gostosa. Pode comer no verão, no inverno, no café da manhã ou qualquer outro horário, porque é leve e de fácil digestão"

Quem já provou, só confirma!