Mesa farta, bacalhau e memórias: Páscoa em uma casa portuguesa, com certeza
O que vai na alma de uma casa portuguesa? Com certeza a mesa farta, rodeada de parentes e amigos, adultos e crianças, todos com muito apetite para comer e conversar. Sobre a mesa, claro, taças cheias de vinho, azeite em quantidade e pão cascudo para despertar a fome.
Na trilha sonora, um bom fado que cante amores dramáticos e muita saudade. Por fim, saindo da cozinha, uma travessa fumegante, tamanho GG, com o prato mais simbólico da terrinha: bacalhau.
Entra ano, sai ano, é assim que a família de Danilo Ribeiro, Mafalda Oliveira e a pequena Alice celebra a Páscoa. Sorte que é fácil juntar a parentada — o trio vive pertinho dos pais dele, José Edmar e Denise, e também dos padrinhos, Nino e Cidinha.
São três casas de almas portuguesas, a poucos metros uma da outra, no miolo da Serra da Cantareira, recanto bucólico na Grande São Paulo. "Quando todos se juntam, o grupo chega a uns 12 adultos, fora as crianças", diz Danilo, enquanto cofia os longos bigodes de pontas arrebitadas, que ele cultiva em homenagem aos antepassados.
Nas árvores genealógicas do casal, só dá Portugal em todos os galhos. Os bisavôs de Danilo, Maximina e Manoel, deixaram Praia de Mira já casados, em 1919, e se instalaram em uma chácara na então remota Zona Norte paulistana, onde cresceram os filhos e os netos.
Minha mãe lembra que eles moravam como se ainda estivessem em Portugal e continuaram vivendo da agricultura. Plantavam salsinha e cebolinha, que meu avô vendia para os comerciantes do mercadão", conta Danilo.
Aquela viagem era longa e difícil. "Ele percorria um trecho a pé, para pegar o trem na Parada Sete, no Horto Florestal, levando os maços de ervas na cabeça." Parte do pagamento era gasto ali mesmo, no centro de São Paulo, para abastecer a despensa da família.
Os almoços nessa chácara, Danilo tem vívidos na lembrança, especialmente aqueles em que o prato principal era o cabrito ensopado no vinho preparado pelo avô. "Sempre comemos muito frango, coelho, leitão e cabritos, todos criados na chácara, mas o bacalhau vinha do mercadão".
A peça de bacalhau ficava pendurada atrás da porta da cozinha e, na hora de preparar, meu avô tirava as últimas lasquinhas com a ponta da faca, para não desperdiçar nada"
A saga de migração dos antepassados de Mafalda é ainda mais antiga. Começou em 1891, quando seus trisavôs chegaram ao Brasil trazendo no colo a pequena Antonia, com apenas 2 anos de idade. Trocaram a minúscula aldeia de Fuste, na vila de Arouca, pela mineira Nova Lima.
Ao longo das décadas seguintes, porém, a família viveu num vaivém entre os dois países, fazendo com que todos formassem laços estreitos com ambas as culturas.
Mafalda não fugiu à regra. Dos 8 aos 17 anos, ela viveu em Fuste, na mesma casa bicentenária onde nasceu sua bisavó. A construção de pedras, que ainda pertence à família, guarda quatro quartos pequenos, de teto baixo, ao redor de uma enorme cozinha, onde o fogão a lenha tinha a função de preparar a comida, aquecer a água e ajudar os moradores a enfrentar os invernos rigorosos do norte português.
No andar de baixo, um depósito armazenava os grãos, o vinho, os enchidos, as carnes salgadas e o azeite produzidos pela família. "Como não havia geladeira, os alimentos eram armazenados na parte mais fresca da casa", ela conta. A divisão entre as culturas portuguesa e brasileira, reconhece Mafalda, deixou marcas nos hábitos alimentares da família.
Minha avó Magdalena sentia muita saudade do Brasil sempre que estava lá. Ela amava mandioca e gostava de comer bacalhau com pirão e farofa"
Com tamanha paixão por Portugal, de ambos os lados, o romance entre Danilo e Mafalda não poderia ter outro sotaque. Na primeira viagem que os dois fizeram juntos, ainda no comecinho do namoro, passaram o mês inteirinho de férias perambulando por terras portuguesas.
Ele ainda trabalhava em banco, ela exercia a carreira de advogada, mas ambos já sonhavam com um plano B. "Eu já tinha feito cursos de gastronomia e de formação de sommelier e comecei cozinhando para amigos, como teste", diz Danilo.
Quando a pandemia pôs todo mundo em quarentena, suspendendo os pequenos eventos, o casal tomou coragem para empreender. Em setembro de 2020, nasceu a Tasquinha da Serra, em formato de rotisseria, com poucas mesas para quem quisesse degustar ali mesmo os pratos portugueses.
Deu tão certo que, em setembro de 2022, eles inauguraram uma segunda unidade, com 60 lugares — a matriz passou a funcionar só como rotisseria. O bacalhau é a estrela do cardápio e aparece em nove preparos. Um deles, servido desde a inauguração, é justamente a receita que o casal cozinha em casa, no domingo de Páscoa: o Bacalhau à Perfeição, prato de forno que resume a bonita história das duas famílias.
Fazem parte do preparo os ingredientes típicos da bacalhoada — pimentões, cebolas, alho e azeite —, com dois intrusos brasucas: mandioca ao murro e couve em tirinhas.
Além de ser o prato da Páscoa, é o que servimos quando a família da Mafalda vem de Portugal nos visitar", orgulha-se Danilo.
Clique na imagem abaixo e confira a receita completa:
Na sobremesa, a parceria luso-brasileira aparece também no pudim de leite. "A receita varia. Às vezes faço com leite condensado, mas de vez em quando prefiro a versão à portuguesa, só com leite, açúcar e muitas gemas", diz Mafalda.
Para a criançada, o momento mais esperado do encontro é a caça aos ovos de Páscoa pelo jardim. Há décadas, a brincadeira fica a cargo do pai de Danilo, José Edmar.
Ele sempre fazia surpresas e nos presenteava com coelhos vivos, que a gente depois criava. Hoje, ele continua a tradição, mas com ovos de chocolate que ele mesmo faz"
Deslize a galeria abaixo e confira mais imagens da preparação deste festivo almoço. Feliz Páscoa!
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