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O café é delas! Na marra, mulheres conquistam o mundo dos grãos especiais

Da produção de grãos à degustação de cafés especiais, as mulheres estão mergulhando no mundo da bebida - Getty Images/iStockphoto
Da produção de grãos à degustação de cafés especiais, as mulheres estão mergulhando no mundo da bebida
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Flávia G Pinho

Colaboração para Nossa

07/05/2023 04h00

"Você não tem ideia de onde está se metendo. Pega seu dinheiro e abre uma loja no shopping." Este foi só um dos conselhos ouvidos pela psicóloga Sandra Momoeda, 56 anos, quando ela decidiu se tornar cafeicultora. Era o ano de 1998, uma época em que não se falava de cafés especiais no Brasil. Mulheres, quando muito, ajudavam pais e maridos na lavoura — à frente das propriedades, só homens.

Teimosa que só, Sandra realizou o sonho na marra. Em terras arrendadas, começou a plantar em São Gonçalo do Sapucaí, sul de Minas Gerais, enquanto estudava sobre plantio de café. Em todos os ambientes, enfrentou atitudes machistas. "Os funcionários me boicotavam, não respeitavam minhas determinações. Quando ia vender o café na cooperativa, me perguntavam 'a senhora é esposa de quem?' ou 'quem é seu patrão?'", ela conta.

Muita coisa mudou desde então. Mais de duas décadas depois, o Brasil está surfando bonito na terceira onda do café, nome que se dá ao movimento de valorização dos cafés especiais. Vimos muitas cafeterias abrindo as portas pelo país, cafés e baristas brasileiros vencendo competições internacionais. Mas as mulheres continuam tendo de brigar por seus espaços.

Em São Paulo, cinco profissionais se uniram para enfrentar o machismo no mundo do café e fundaram, em março, o grupo Minas que Torram. Cinthia Bracco, proprietária do Astronauta Café, se juntou a Nayra Caldas, do Joana Café, Regina Machado, do Tear Cafés, Camila Natario, do Cafehafen, e Carolina Pereira, do Bixo Café.

Minas que Torram - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Minas que Torram
Imagem: Reprodução/Instagram

A pauta do grupo é extensa e começa com uma palavra fundamental para a luta feminista: sororidade. Regina, por exemplo, não tem equipamentos próprios e tinha dificuldade para se estabelecer. "Procurava um torrefador para alugar, muitos fecharam as portas, mas a Cinthia me acolheu e ainda cedeu a sala para eu dar meus cursos", diz Regina.

O Minas que Torram não é o primeiro coletivo feminino no mundo do café. Em 2019, o grupo Elas Torram chegou a reunir 122 mulheres do setor, também com a missão de dar mais visibilidade às questões de gênero em um mercado sexista. Agora, porém, as minas pretendem ir além do debate e partir para a ação — elas estão lançando kits de cafés especiais, selecionados por cada uma delas, plantados por cafeicultoras mulheres ou por famílias onde as moças podem ser protagonistas.

O primeiro kit já está à venda e, mais do que grãos, entrega aos compradores cinco bonitas histórias de vida. Sandra Momoeda entrou com seu café Catiguá, que adquire sabor ainda mais especial quando a gente sabe que ela é mãe solo, perdeu toda a plantação em um incêndio, em 2017, e está conseguindo se reerguer.

A produtora de café Sandra Momoeda - Joel Silva/ Folhapress - Joel Silva/ Folhapress
A produtora de café Sandra Momoeda
Imagem: Joel Silva/ Folhapress

O café Caturra Amarelo vem da região do Caparaó, no Espírito Santo, da plantação da Larissa Sodré de Paula — filha de produtores, ela aprendeu com a mãe, Josimar Sodré, criadora do Café da Lalá, que uma mulher pode, sim, ser manda-chuva na lavoura.

Rosimeire Jacon dos Santos, que assina o blend de cafés Catuaí e Obatã colhidos em Caconde (SP), já está cuidando de passar seu saber para a filha, Maria Vitória, de 4 anos.

"Quando não está na escola, ela está na plantação ou mexendo o café no terreiro, com o rodo", orgulha-se a mãe.

Nos grãos e xícaras

Camila Natario, do Cafehafen - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Camila Natario, do Cafehafen
Imagem: Reprodução/Instagram

O preconceito de gênero não é exclusividade do ambiente rural. Fundadora do Cafehafen, Camila se especializou em cafés na Alemanha, onde morava, e voltou para o Brasil trazendo um enxoval e tanto: equipamentos de última geração, que custam muito caro por aqui. A notícia logo se espalhou.

"Muitos profissionais homens entraram em contato comigo, pediram equipamentos emprestados, mas nenhum deles jamais me convidou para participar de um evento sequer", ela acusa. Cursos de torra andam cheios de mulheres, Camila emenda, que têm dificuldade para se empregar depois. "Antes de empreender e adquirir o próprio equipamento, a gente precisa acumular experiência, mas poucos nos dão essa chance."

Não é diferente no balcão — minas baristas ainda são minoria. Nos campeonatos, então, nem se fala. Que o diga a mineira Julia Fortini, que ficou entre os 10 melhores do mundo na competição World Brewers Cup, realizada na Austrália, em 2022. Filha e neta de cafeicultores e responsável pela cafeteria Academia do Café, em Belo Horizonte, Julia tem o certificado de Q-Grader, que a põe na posição de expert reconhecida internacionalmente.

Julia Fortini - Weber Padua - Weber Padua
Julia Fortini
Imagem: Weber Padua

Entende tanto do assunto, da planta à xícara, que parece ter café correndo nas veias. Mas, volta e meia, se vê excluída das panelinhas.

No início da carreira, sentia que precisava comprovar a minha trajetória como profissional do café para que me levassem a sério. O backstage de um campeonato pode ser intimidador. Os homens são maioria e algumas mulheres, que estão começando, podem se sentir isoladas."

Uma das precursoras no meio, Gelma Franco fundou a rede Il Barista em 2003 e viu de perto todo esse movimento acontecer. Lembra que viu muita filha e esposa de cafeicultor tendo de assumir cafezais na marra, sem qualquer preparo, e conseguir chegar lá. Os números não mentem.

"Das 300 mil propriedades rurais que temos no Brasil, somente 2% tinham mulheres gestoras em 2010. Em 2022, esse índice já tinha pulado para 18%", compara. A briga está longe do fim, ela diz, mas ninguém larga a mão de ninguém.

Mulher é assim. Quando a gente cisma com uma coisa, não sossega até conseguir."