Turismo infla aluguéis em Lisboa e 'expulsa' moradores: 'Uma injustiça'
O Príncipe Real é, esteticamente, um bairro bem lisboeta: há muitas ladeiras, prédios coloridos e telhadinhos laranja. Ele fica próximo à zona mais central de Lisboa, mas não é exatamente a parte mais turística da cidade.
Ainda assim, ali mal se ouve o português. Você entra em um restaurante ou café, e é mais comum que você seja atendido em inglês do que no idioma de Camões.
A situação é um reflexo de um fenômeno que está acontecendo na capital de Portugal: já não há mais tantos moradores locais nos bairros mais centrais da cidade. E o turismo e os nômades digitais têm um papel importante nisso.
No dia 1º de abril, milhares de portugueses e moradores de Lisboa ocuparam as ruas da cidade em uma manifestação pelo direito à habitação.
É que a cidade, assim como todo o país, está passando por uma séria crise de moradia: o valor do aluguel em Lisboa aumentou 36,9% no último ano, segundo dados da Casafari, plataforma especializada em informações estatísticas do mercado imobiliário europeu.
É mais caro morar em Lisboa do que em cidades como Madri, na Espanha, e Paris, na França. Além disso, a pouca oferta de casas e apartamentos destinados a famílias locais e facilidade no despejo fez com que, de 2019 para 2022, houvesse um aumento de 19% da população de rua na capital portuguesa.
Uma das pessoas nessa marcha era o estudante Rodrigo Machado, 22, do Movimento pela Habitação e da associação Chão das Lutas. Nascido e criado em Lisboa, ele passou parte da infância em Alfama, centro histórico lisboeta.
"É algo raro, ainda mais uma pessoa jovem como eu", diz o lisboeta. Ele foi um dos primeiros afetados pelo aumento dos aluguéis: aos 7 anos, os pais dele não conseguiam mais bancar o apartamento na cidade e, por isso, a família teve que se mudar para Amadora, município vizinho a Lisboa.
O processo (que culminou na atual crise de moradia) levou muitos anos. Há 15 anos era possível pagar uma renda em Lisboa, mas surgiram várias políticas públicas que levaram à crise.
Um dos motivos, de acordo com ele, é a "indústria" do turismo que se estabeleceu em Portugal.
O país ficou na moda e trouxe muitos turistas. O que é positivo, mas tomou-se uma decisão política de transformar o país em um resort de férias. Parou-se de produzir e agora vivemos apenas de turismo. A cidade de Lisboa, principalmente no centro, tornou-se um grande hotel a céu aberto".
Ele diz isso porque, atualmente, Lisboa é uma das cidades que mais têm AirBnbs: são 30 alojamentos locais por cada mil habitantes, segundo análise da consultoria Moody's. Por conta disso, há bairros como Santa Maria Maior em que 60% das habitações são AirBnbs.
Outro local bastante afetado é o bairro onde Rodrigo nasceu. Alfama é uma zona medieval, com ruas que parecem labirintos e prédios com varal à mostra. Super instagramável. Por isso, muitos proprietários transformaram os apartamentos da região em locais para aluguel de temporada.
Para eles, é mais rentável do que ter um inquilino de longa duração. "Ainda mais, quando, na época, era uma população muito envelhecida, que não podia pagar os arrendamentos que ficavam cada vez mais altos", diz Rodrigo Machado.
Mas os proprietários de um ou dois apartamentos não são o grande problema.
Lisboa à venda
O comediante e ator Diogo Faro criou o movimento "Casa é um Direito" após fazer um vídeo brincando com a crise de moradias. A partir daí, começou a receber relatos de pessoas que vivem a dificuldade de encontrar uma casa na pele: "Havia casais que se divorciam e não conseguem morar sozinhos, de jovens que não podem sair da casa dos pais, famílias inteiras que moram em um quarto ", explica o artista.
Para Diogo, os principais culpados pela crise são os grandes fundos imobiliários que estão a comprar Lisboa. "Eles têm benefícios fiscais, incentivos para comprar prédios, ruas inteiras e transformar em apartamentos em Airbnbs ou estabelecem o valor de mercado que quiserem", diz.
O turismo é essencial, toda a gente é bem-vinda, mas tem que ter um tipo de controle. Não podemos mandar as pessoas irem embora da cidade para construir hotéis".
Há, ainda, um problema de oferta e demanda. O Censo 2021 de Portugal dá conta que, nos últimos dez anos, houve um aumento de mais de 40% no número de residentes estrangeiros no país. Além de brasileiros, paquistaneses e chineses, houve uma grande imigração de pessoas de outros países da Europa, como holandeses, alemães e franceses.
Muitos são nômades digitais, ou seja, trabalham para empresas de outros países, onde têm salários melhores, mas residem em Portugal por conta do clima e de incentivos fiscais, como uma menor taxa de imposto de renda. Isso tem impactado no bolso de quem mora e trabalha no país.
"É uma injustiça fiscal e social", pontua Rodrigo Machado. Para o estudante, a isenção, junto com a disparidade nos salários, faz com que eles tenham mais poder competitivo na hora de buscar uma casa. O salário médio na área metropolitana de Lisboa é de 1.047 euros (cerca de R$ 5,7 mil), segundo o estudo Brighter Future, conduzido pela Fundação José Neves, enquanto a média de aluguel em Lisboa é de 1.235 euros (cerca de R$ 6,8 mil), de acordo com relatório da seguradora Aluga Seguro.
Assim, um cidadão médio que mora e trabalha em Portugal não consegue alugar uma casa na capital do país. Mas nômades digitais, sim.
No entanto, tanto Diogo como Rodrigo dizem que não podemos culpá-los, nem turistas que viajam para conhecer a cidade
"Eles só vêm se aproveitar de um sistema que é montado para beneficiá-los", afirma o estudante de ciências sociais. Ambos dizem que quem deve ser responsabilizado é o governo.
"Vemos um desprezo total por quem cá vive e trabalha, sendo português ou não", complementa Machado. E é dos governantes que eles, e os movimentos pela habitação, estão cobrando soluções.
Diante da pressão, o governo português começou, no começo do ano, a tomar algumas medidas para lidar com a crise da habitação.
Entre elas, o fim do gold visa, que dava autorização de residência para estrangeiros que investissem 500 mil euros (cerca de R$ 2,7 mi) em propriedades em Portugal; a liberação de apoio financeiro para pagamento de aluguel, suspensão de novas licenças para Airbnbs e reavaliação das já existentes e arrendamento forçado de casas desocupadas que estão em condições de serem habitadas.
Resta saber se essas medidas serão o bastante para lidar com um problema tão complexo.
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