Quibe cru com carne moída é estrela da mesa que une quatro gerações de mães
Em uma ponta da numerosa família Atrib está dona Nadir, 93 anos, filha de um casal de libaneses que chegou a São Paulo no comecinho do século 20. Na outra, um de seus bisnetos, o pequeno Guilherme, que completa 3 anos em junho. Nove décadas separam as duas extremidades desse clã que, quando se reúne, é inegavelmente dominado pelas mulheres — e 12 delas são mães.
Com fama de geniosas, donas de personalidades marcantes, as Atrib carregam no sangue o amor pela cozinha árabe, a teimosia de quem soube recomeçar a vida em terra estrangeira e, ao mesmo tempo, a suavidade de quem não larga mão das crias e adora alimentá-las com afeto e gostosuras.
Qualquer data especial é motivo para reunião, mesmo que nem todos possam estar sempre presentes. Tem gente que foi morar fora do Brasil, tem casal que se separou e trouxe novos membros, filhos e netos cresceram e construíram carreiras profissionais que, eventualmente, trombam com os compromissos familiares.
Mesmo assim, dona Nadir não abre mão da casa cheia e só delega tarefas em último caso. Segunda de seis filhos, sendo cinco meninas e só um varão, ela casou-se adolescente, aos 16 anos, e sempre teve as rédeas da casa bem firmes nas mãos. "Minha mãe sempre foi belíssima e meu pai, um militar 11 anos mais velho, se encantou por ela. Os dois se conheceram, noivaram e casaram em seis meses", conta Rita, sua filha caçula.
Mãe de cinco, Nadir teve os quatro primeiros como uma escadinha. A primogênita, Adibe, nasceu antes que ela completasse 18 anos. Logo depois vieram Ibrahim, Solange e Márcia e, após um intervalo de 13 anos, a temporã Rita. Na casa espaçosa onde viviam, na Vila Mariana, Zona Sul de São Paulo, pilotar churrasqueira sempre foi tarefa materna. Se acabava a luz, era festa — preparar espetinhos à luz de velas era uma de suas especialidades. E olha que a casa vivia cheia.
"Sempre levávamos namorados e namoradas e meu pai, Abadio Atrib, com frequência chegava do trabalho trazendo amigos para comer. A cozinha, com duas geladeiras, funcionava o dia inteiro", diz Rita.
Na mesa com os Atrib
Pratos árabes sempre foram o ponto forte dessa cozinha tão movimentada. Pudera. Assim como os pais de dona Nadir, seus sogros também deixaram o Líbano, já casados, para constituir família no Brasil, onde abriram um armazém de secos e molhados.
Os cardápios do dia a dia, porém, eram uma bem equilibrada mistura entre receitas sírio-libanesas e brasileiras — arroz com feijão e bife à milanesa em um dia, quibe com abobrinha recheada no outro. Não havia espaço para alimentos pouco nutritivos. Até nas lancheiras que a criançada levava para a escola, os sanduíches eram recheados com patê de legumes feito em casa. Refrigerantes eram uma indulgência reservada aos momentos festivos.
Aprender a cozinhar, entre os Atrib, nunca foi uma obrigação. "Meus pais davam muito valor aos estudos e criaram as filhas para trabalhar, não para casar. Todas nós fizemos faculdade", diz Rita, formada em arquitetura pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Mesmo assim, boa parte do clã desenvolveu espontaneamente os dotes culinários. Rita, que descobriu o traquejo com as panelas durante o período em que morou na Europa, é hoje proprietária do bufê Petit Comité. O negócio começou devagarzinho, na cozinha de um ex-sócio, e hoje dá conta de jantares oferecidos a pop stars e recepções para até 2 mil pessoas. Desde 2016, ela também comanda uma rotisseria em Moema.
No meio dos menus que prepara, Rita vê muito de dona Nadir. "A cozinha da minha família aparece bastante no bufê. Desde o começo, minha mãe esteve presente, orientou cozinheiros e, várias vezes, assumiu a operação quando viajei." Enquanto os cardápios de banquetes primam pela sofisticação, a rotisseria foca nas comidinhas saborosas do dia a dia, justamente as que têm a cara e o jeito da matriarca.
Minha mãe nunca foi muito de pratos chiques. As tortas, nossos carros-chefes, são receitas dela, assim como os bolos de coco e de nozes, a carne louca, as sopas e os folhados."
Quibe cru com carne moída
Em casa, a herdeira culinária de dona Nadir não é a filha que virou banqueteira profissional. É Solange, terceira na prole, que consegue reproduzir as receitas libanesas da mãe sem tirar nem pôr. De olhos fechados, garante Rita, ninguém consegue distinguir qual das duas preparou um prato.
E olha que o clã é dos mais exigentes — o prato predileto dos Atrib, aquele que jamais pode faltar nos encontros de família, é o quibe cru. Trata-se de uma receita capciosa. Parece muito fácil, mas requer técnica no preparo e conhecimento na hora de comprar o ingrediente principal.
Dona Nadir sempre preferiu usar coxão mole, corte que deve ser ultralimpo.
Ela conhece os açougueiros e vai para trás do balcão, para escolher o miolo do coxão mole e ensinar como tirar todas as gordurinhas. Também faz questão de moer a carne em casa e passá-la pela máquina duas vezes", conta Rita.
Carregar nos temperos, diz sua filha, é um erro comum. "A hortelã e a cebola só entram no final, sem misturar, senão o quibe escurece."
Nos restaurantes sírio-libaneses paulistanos, o quibe cru costuma ir à mesa na companhia de pão árabe. Na casa dos Atrib também é assim, mas com um toque a mais — ninguém abre mão da carne moída refogada para acompanhar. E que refogado... A capa de filé moída vai à panela com cebola e bastante manteiga, até ficar bem suculenta.
Para Rita, gostoso é formar uma bolota de quibe cru, colocar uma colherada de carne refogada por cima e segurar a composição com pão árabe, como se fosse uma luva que leva toda essa delícia direto à boca.
Tem gente que pega só um pedacinho de pão árabe e bota o quibe e a carne em cima, e outros preferem usar talheres. Só não pode faltar essa receita. É nosso xodó, o prato mais esperado de todos os encontros."
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