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'O que aprendi com Derivan': bartenders celebram memória do mestre

Derivan de Souza, o Mestre Derivan - Fernando Moraes/UOL
Derivan de Souza, o Mestre Derivan
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Sérgio Crusco

Colaboração para Nossa

19/05/2023 09h01

Derivan de Souza, o Mestre Derivan, um dos bartenders brasileiros de carreira mais longeva, partiu nesta quinta, 18 de maio, Dia Mundial do Coquetel. Estava em Sesimbra, Portugal, depois de participar do evento Lisbon Bar Show, onde organizou etapas internacionais do Concurso Rabo de Galo.

Estar com Derivan era aprender e sorrir. Educado, maroto, gentil e sempre com grandes histórias para contar, inundava qualquer ambiente com seu carisma. Batalhou pelo reconhecimento dos coquetéis brasileiros nas associações internacionais de coquetelaria, lançou livros de receitas, formatou cursos profissionalizantes para a comunidade de bartenders e muito mais.

Quem conviveu com Derivan reconhece seu legado de alegria e seu lugar indiscutível de mestre dos bartenders brasileiros.

Nossa conversou com profissionais de bar que contam momentos de aprendizado, carinho, luta e acolhimento.

Laércio Zulu

Laércio Zulu e Mestre Derivan - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Laércio Zulu e Mestre Derivan
Imagem: Reprodução/Instagram

"Cada minuto de prosa com Mestre Derivan era um aprendizado. Muito educado e cortês, o sorriso no rosto estampava a maestria.

Uma vez, a gente almoçando no bar São Conrado, um cliente o reconheceu e veio falar com ele. Ele se levantou para conversar com o figura, que não se tocava de que estava atrapalhando um almoço e ficava rendendo assunto sobre bar. Enfim, a feijoada já meio fria, o mestre voltou a sentar e falei: 'Que cara sem noção!' Ele, rindo, respondeu: 'Meu amigo, vida de barman é assim, tem que sorrir mesmo quando te param no meio da feijoada'.

Esse episódio me marcou muito. Sempre que o cliente vem falar com você, lhe reconhecendo como bartender, transmita alegria. Esse era um dos muitos expertises dele."

Marcelo Serrano

Marcelo Serrano e Mestre Derivan - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Marcelo Serrano e Mestre Derivan
Imagem: Reprodução/Instagram

"Derivan foi uma das primeiras pessoas que conheci quando voltei ao Brasil como bartender, em 2006. Ele me apadrinhou, me colocou na frente do MyNY Bar e, ao longo da minha carreira, sempre me aconselhou e me apoiou. O que mais ele me ensinou foi essa alegria, essa humildade, o carisma que ele tinha no balcão, não importava a posição em que você estivesse.

Era bem renomado, mas confiava em quem estava começando, dava aquela força. Derivan me chamou para dar aulas na Associação Brasileira de Sommeliers, para compartilhar nossos conhecimentos. Tínhamos o projeto de fazer um livro juntos, que infelizmente não se realizou.

Fica a grande amizade, o grande carinho. Era um cara hors concours, sensacional, uma atração atrás do balcão. Uma grande pessoa, que ensinou a muita gente.

Ele morreu onde sempre lutou para estar, levando a coquetelaria do Brasil para fora. Cumpriu o desejo que sempre percorreu."

Márcio Silva

"O maior legado que ele deixa é o carisma. Foi uma das pessoas mais carismáticas que conheci no mercado de bar, sempre muito receptivo, sempre sorrindo, sempre abraçando as pessoas. Às vezes ficava eufórico, levantava a voz e também levava as pessoas para o alto. Era contagiante.

Nos encontramos pela última vez no Lisbon Bar Show. Ele assistiu à minha palestra e, faltando cinco minutos para a palestra dele, gritou: 'Marcinho, te amo!'

É uma grande perda, não só profissional, pelo quanto ele representava para a comunidade de bartenders e pelo que ensinava aos bartenders novos. Perdemos um grande ser humano, uma pessoa incrível.

Me ensinou que, antes de sermos uma indústria de bebidas, somos uma indústria de pessoas. Sempre o chamei de padrinho."

Marco De la Roche

"Mestre Derivan me ensinou tanto que é dificil explicar. Sempre o busquei para aprender sobre a história da nossa profissão, colher relatos sobre os bares e bartenders que estavam aqui antes de eu chegar, e como se desenvolveu nossa categoria. E ele sempre foi tão disposto a compartilhar, com paciência e detalhe nos relatos.

Mas o que mais sinto que ele me influenciou foi em aprender a hospitalidade e a humildade em servir. Era nato dele e o fez ser quem foi."

Mário Oliveira

Mestre Derivan e Mário Oliveira - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Mestre Derivan e Mário Oliveira
Imagem: Reprodução/Instagram

"Minha história com Mestre Derivan vem de muito tempo, ele conhecia meu pai e me admitiu no bar dele, pois gostava do meu trabalho, dizia que eu tinha tudo pra ser um novo destaque, sempre me incentivou. Disse duas frases que sempre me acompanham.

A primeira: 'As pessoas comem e bebem histórias'. A segunda: 'A performance atrás do balcão fala pelo bartender'. Levo esses ensinamentos para a vida, além das histórias maravilhosas que vou guardar no coração para sempre."

Matheus Cunha

"Ele nunca parou, foi o único bartender que viveu a vida inteira em prol da coquetelaria e da classe. Fui bem próximo a ele e aprendi que a vida de bar, por mais dura, uma rotina muito desgastante, pode ser uma carreira promissora e feliz. Aprendi que bartender, sim, tem valor e que deve se dar esse valor.

Ouvi muitas histórias, foi um grande amigo, ajudou muitas pessoas. Deixou um legado de alegria, hospitalidade, acolhimento, companheirismo e luta pela nossa profissionalização. A grande massa de bartenders aprendeu diretamente ou indiretamente com ele.

Será para sempre nosso mestre, não haverá outra pessoa para suprir seu lugar. Sou grato de ter passado bons momentos com Mestre Derivan. Eu brincava que não conseguia vê-lo sem beijar sua careca."

Rodolfo Bob

"A gente se econtrava e se abraçava como irmãos de axé. Ele sempre apoiava o meu trabalho e o do Zulu, como homens pretos de herança nordestina e orgulhosos. Ele sabia da importância da luta, da resistência, e transitava com classe e toda sua simpatia em qualquer ambiente, do Fasano a uma cervejinha numa travessa do Baixo Augusta. Tratava a todos com gentileza, dando bons conselhos e exemplos.

Criou uma família linda, conquistou seus bens para ter estabilidade e conforto. É exemplo de homem honrado, além de grande professor.

Olho para a trajetória do Mestre Derivan e digo que ele não fez pela coquetelaria brasileira mais do que fez pela autoestima e indentidade dos jovens negros, nordestinos e periféricos. Ele nem precisava falar, espressava esse orgulho no dia a dia, com seu clássico paletó branco, anel dourado na mão e sorriso largo.

Era um símbolo de homem preto nordestino que a branquitude se calava para escutar, fosse para contar uma história de coquetel ou qualquer outro assunto. Mestre Derivan era a memória viva do serviço de hospitalidade.

Vai fazer muita falta seu abraço apertado seguido do nosso cumprimento: 'Axé, meu irmão!' Axé, meu amigo! Que Obaluaye te acompanhe nessa transição e que nossa querida Nanã te acolha e a todos que te amam. Até logo!"

Spencer Amereno Jr.

"Entre muitas coisas, aprendi com Mestre Derivan a ser gentil e cuidadoso com as pessoas em qualquer circunstância, independentemente de estar atrás do bar ou não.

Outra grande lição que Derivan passou foi sua entrega plena ao ofício de bartender, atuando na barra por mais de 40 anos, sempre com muito carinho e dedicação aos convidados e à equipe.

Observar a trajetória de Derivan é uma aula de resiliência, vide sua história com a oficialização da Caipirinha pela International Bartenders Association."

Stephanie Marinkovic

O que mais aprendi com o Derivan foi a gentileza. Buscar, a cada dia, ser um ser humano melhor."

Sylas Rocha

Aprendi que um bom bartender tem orgulho do que faz. Em vez de querer títulos ou posições, realmente deve fazer o que é a raiz da profissão: servir. Isso não te torna menos do que ninguém.

O cara foi o gênio da sua época, nunca parou de correr atrás, de inovar, de brilhar. Não lembro um dia de vê-lo triste, cabisbaixo. Todo mundo tem problemas, mas quando você se torna um profissional e ama o que faz, esconde esses problemas da vista dos outros, serve alegria e hospitalidade.

Foi isso que aprendi com o Mestre Derivan e vou seguir fazendo por toda minha vida."

Talita Simões

Puxa! Aprendi com ele que não se tem idade para estar atrás de uma barra e também que a hospitalidade está à frente de tudo. O coquetel é uma obrigação de estar bom, se feito com amor, carinho e excelência."

Thiago Ceccotti

Derivan sempre foi muito humilde, mesmo tendo toda a experiência e o reconhecimento. No final, somos todos iguais e merecedores de respeito e carinho."

Mestre Derivan e Thiago Ceccotti - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Mestre Derivan e Thiago Ceccotti
Imagem: Reprodução/Instagram

Tom Oliveira

"Com o mestre aprendi a ver o melhor de cada pessoa. A olhar para tudo que temos de grande aqui primeiro antes de olharmos pra fora.

Com o mestre aprendi a ser resiliente, que nada é pra já, e que temos que viver o hoje, pois a vida é um sopro."

Uma carreira ilustre e cheia de histórias

Com cerca de 50 anos de balcão, o baiano de Cansanção começou na profissão após ser reprovado no curso de datilografia do Senac aos 17 anos, que o qualificaria para uma vaga em um banco. Por sugestão de colegas, acabou embarcando no curso de garçom, que também o habilitaria a trabalhar em bares ou hotelaria.

Depois de alguns anos servindo cafés em uma agência de publicidade e em uma malharia, em 1974 foi chamado para integrar a equipe do Hotel Hilton, que inaugurava na Avenida Ipiranga. Começou como cumim (o auxiliar do garçom), saiu como supervisor de bar.

A simpatia, o sorriso e o charme, dons naturais, foram lapidados pelo contato com "gente que sabia das coisas" em uma grande rede como o Hilton, conforme observou nosso repórter Sergio Crusco após uma conversa em janeiro de 2023. "Eu observava o gosto e o comportamento das pessoas cosmopolitas, viajadas, que tinham contato com a coquetelaria que se fazia no mundo."

Derivan de Souza  - Fernando Moraes/UOL - Fernando Moraes/UOL
Derivan de Souza
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Foi ali também que ele aprendeu mixes internacionais. "O Hilton provocou uma revolução no que se entendia por serviço de hotelaria e de coquetelaria no Brasil. A direção trazia manuais de coquetéis de fora. Foi a primeira vez que tive contato com receitas clássicas como Dry Martini, Daiquiri, Manhattan, Old Fashioned", contou na ocasião.

Ao longo das décadas, Derivan comandou diversos bares da capital, como o Blue Note Jazz Club. Mas ele lembrava com carinho de sua passagem de 17 aos pelo Bistrô, um pequeno pub na galeria Conjunto Zarvos na Consolação.

O Bistrô podia reunir, numa só jornada, o compositor Adoniran Barbosa ("ele só bebia suco de tomate"), o cantor Ronnie Von, o artista plástico Aldemir Martins, o político Ulysses Guimarães ("era fã de poire, o destilado de pera francês"), o publicitário Washington Olivetto, o diretor Nilton Travesso e a jornalista Marília Gabriela ou o piloto Wilsinho Fittipaldi.

Eventualmente Derivan se tornou sócio do bar, onde servia ao mesmo tempo Erasmo Dias, coronel linha-dura ligado à ditadura militar, e os arquitetos do jovem Partido dos Trabalhadores, entre eles o jurista Hélio Bicudo e o economista Eduardo Suplicy.

"O coronel ia lá de propósito, queria saber o que o pessoal do PT fazia e bebia, queria beber igual. Eu sugeria que ele se mantivesse no seu uisquinho costumeiro, porque sabia que, assim, estaria tudo sob controle. Eu morria de medo dele, todo mundo morria, o homem era grosso como uma pedra", brincou.

Para ele, todos eram bem-vindos.

Bartender torce para todos os times de futebol, apoia todos os partidos políticos e tem fé em todas as religiões."

Mestre Derivan

Nos últimos anos, Derivan se dedicou a escrever livros sobre mixologia, e a formar as próximas gerações de experts do balcão na Academia de Bartenders da Associação Brasileira de Sommeliers de São Paulo, que ele ajudou a fundar. Ele também se dedicava ao Concurso Rabo de Galo que rodou primeiro o Brasil e agora chegava a escalas internacionais.

Seus filhos Douglas e Danty, também bartenders, seguem com o legado do pai.