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Com ratos mortos na vitrine, loja centenária é atração bizarra de Paris

Felipe van Deursen

Colaboração para Nossa

20/05/2023 04h00

Imagine a cena: você está em Paris e decide sentar em um bistrô no pequeno largo da estação Chatelet do metrô, um lugar comercial despretensioso, mas aprazível, onde a principal atração da área não é esse bistrô, mas uma loja ao lado, parede com parede, cuja vitrine tem um bando de ratos mortos. Uma exibição de extermínio emoldurada nas charmosas fachadas das lojas parisienses do século 19.

A loja se chama Julien Aurouze e foi fundada em 1872 para vender produtos e serviços de controle de pragas. Continua no ramo e continua tocada pela família. Com um século e meio de tradição, ela acabou virando um curioso ponto turístico graças a sua vitrine repleta de roedores pendurados em ratoeiras, ratos empalhados e bizarrices do tipo.

A relativa fama local atrai, desde 2007, turistas fãs da Pixar que estão de passagem pelas atrações famosas das redondezas, como a Pont Neuf. O motivo é a breve aparição da vitrine em uma cena marcante de "Ratatouille", em que o protagonista, Remy, é alertado sobre o que acontece com seus semelhantes quando ficam próximos demais dos humanos.

Alguns dos animais expostos estão lá desde 1925. Cecile Aurouze, que toca a loja junto com o irmão Julien, já declarou à imprensa que não tem a intenção de tirar as carcaças da vitrine, porque elas são um símbolo da loja - e um orgulho da família. O bisavô deles, Étienne Aurouze, é meio que uma celebridade no universo do controle de pragas. Sabe aquela ratoeira clássica, de desenho animado? Pois é, ele que inventou.

Ratos pendurados na vitrine da loja Aurouze, de Paris - Doc Searls/WikiCommons - Doc Searls/WikiCommons
Ratos pendurados na vitrine da loja Aurouze, de Paris
Imagem: Doc Searls/WikiCommons

Já havia armadilhas para capturar ratos, camundongos e outros animais indesejados desde o Egito Antigo, explica o biólogo alemão Joachim Dagg em um artigo na publicação científica "Evolution: Education and Outreach". A contribuição de Aurouze foi a armadilha de arame ativada por uma mola. Um inventor americano e um inglês patentearam esse tipo de ratoeira em seus países nos anos 1890, mas antes disso, em 1878, na Exposição Universal de Paris, Aurouze expôs sua criação. A mola exterminadora já estava lá, apenas sem a base de madeira.

Controle de Pragas Aurouze - Facebook/Reprodução - Facebook/Reprodução
A fachada da loja Controle de Pragas Aurouze
Imagem: Facebook/Reprodução

A "Le Trocadéroscope", uma revista dedicada à Exposição, mencionou a participação de Aurouze: "Todos os nossos cumprimentos à Casa Aurouze, que exibia uma variedade muito completa de armadilhas para animais. Da ratoeira, que é fofa e graciosa, até a armadilha da raposa com molas impiedosas, tudo está lá". O jornalista, não plenamente satisfeito, escreveu ainda que foi uma pena Aurouze não oferecer nada contra percevejos de cama, praga que infernizava as noites escaldantes de insônia e coceira - e que ainda é um tormento em hospedagens mais simples no Velho Mundo.

Ratos empalhados na vitrine de tradicional loja francesa - Facebook/Reprodução - Facebook/Reprodução
Ratos empalhados na vitrine de tradicional loja francesa
Imagem: Facebook/Reprodução

Modernidades

Nem só de nostalgia vive a loja. Na verdade, ratoeira é o que menos tem na maison Aurouze. Cecile contou, em entrevista ao site "Bloomberg News", que muitos de seus clientes são restaurantes famosos e grandes mercados. Por lei, todo porão de Paris deve ser dedetizado e desratizado. São lugares grandes e complexos, que demandam raticidas com ação anticoagulante e outros produtos, e não a simplória ratoeira que o Tom usa contra o Jerry (elas são mais úteis em ambientes domésticos). A Aurouze oferece diversos tipos de produtos de controle de pragas, e não só contra roedores, mas também insetos, aracnídeos, pombas, cobras e coelhos.

A loja fica em uma rua que dá acesso a Les Halles, o endereço do antigo mercado público de Paris, que por séculos abasteceu a cidade até que o general De Gaulle, quando presidiu o país nos anos 1960, ordenou a mudança para Rungis, nos arredores da capital. Entre os diversos motivos alegados, estavam o crescimento da população e as comuns infestações de ratos.

Paris sempre foi uma cidade habitada por humanos e roedores. Em algumas épocas, a situação fugia do controle. Após a Primeira Guerra Mundial, em 1918, a cidade foi atingida em cheio por uma pandemia de peste bubônica que já castigava o mundo desde 1894. A doença, causada por uma bactéria que infecta pulgas, ratos e humanos, se espalhou por Paris graças ao fluxo de tropas, refugiados e navios usados para reconstruir o país.

Proprietários da Aurouze celebraram reabertura da loja após pandemia - Instagram/Reprodução - Instagram/Reprodução
Proprietários da Aurouze celebraram reabertura da loja após pandemia
Imagem: Instagram/Reprodução

Estima-se que 8 milhões de ratos viviam na região metropolitana, quase o dobro do que o número de pessoas em 1920. O governo anunciou uma guerra contra a praga, exterminou 6 a 7 milhões de ratos, mas ainda assim perdeu, segundo o historiador da ciência Peter Soppelsa em um artigo no "Journal of the Western Society for French History".

Os ratos continuam aí, mas pelo menos há profissionais para tratar do assunto.