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Quase 30% dos restaurantes do iFood são 'cozinhas fantasma', revela estudo

As cozinhas "fantasma", que só produzem alimentos para entrega, já representam um terço dos restaurantes no aplicativo mais utilizado no Brasil - Getty Images
As cozinhas 'fantasma', que só produzem alimentos para entrega, já representam um terço dos restaurantes no aplicativo mais utilizado no Brasil
Imagem: Getty Images

Julia Moióli

Agência FAPESP

23/05/2023 10h45

Aproximadamente um terço dos restaurantes listados no iFood, aplicativo de entrega de comida mais utilizado pelos brasileiros, são 'dark kitchens', de acordo com um estudo inédito no país — e um dos poucos já realizados no mundo — sobre as cozinhas exclusivas para delivery, que ganharam força durante a pandemia de covid-19.

Além da ausência de instalações para consumo no local, esses estabelecimentos apresentam ainda outras características próprias: estão localizados em áreas mais distantes dos centros urbanos, comercializam especialmente comida brasileira, lanches e sobremesas e são mais baratos do que restaurantes convencionais. Essas e outras conclusões foram apresentadas por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) em artigo publicado quinta-feira (18) na revista Food Research International.

Para identificar e caracterizar as dark kitchens no aplicativo, a coleta de dados foi realizada em duas etapas. Na primeira, por meio de mineração de dados, foram obtidos nome, URL endereço e CNPJ (Cadastro Nacional de Empresas) de 22.520 restaurantes de três centros urbanos (Limeira, Campinas e São Paulo), bem como sua distância linear até o centro da cidade, tempo estimado de entrega, avaliação dos usuários, tipo de comida oferecida, possibilidade de agendamento de entregas e rastreamento da localização do pedido.

Na segunda, os primeiros mil estabelecimentos localizados a partir do centro de cada cidade foram classificados como dark kitchens (727, ou seja, 27,1%), 'standard' ou restaurantes-padrão (1.749 ou 65,2%) ou indefinidos (206 ou 7,7%), sobre os quais não foram obtidas informações suficientes ou cujos endereços apontavam para lugares inexistentes, como terrenos. Na capital, o número de dark kitchens é ainda mais alto: 35,4%.

As "cozinhas fantasmas" existem apenas no mundo digital e não têm fachada física para o cliente - Divulgação - Divulgação
As "cozinhas fantasmas" existem apenas no mundo digital e não têm fachada física para o cliente
Imagem: Divulgação

"Acreditamos, no entanto, que esse número seja maior, já que a plataforma não exige posicionamento dos restaurantes nem identifica a informação para o consumidor, fazendo com que, em diversos casos, não tenhamos conseguido dados suficientes para bater o martelo", afirma Diogo Thimoteo da Cunha, professor do curso de nutrição, pesquisador do Laboratório Multidisciplinar em Alimentos e Saúde (LabMAS) da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp (FAC-Unicamp) e coordenador da pesquisa. "Tanto que precisamos realizar também um trabalho investigativo, buscando informações em redes sociais e no Google Street View, telefonando e enviando mensagens e até visitando lugares para observar fachadas."

"Também pudemos constatar que, nas três cidades, as dark kitchens ficam mais distantes das regiões centrais, o que barateia custos de produção e leva a preços mais baixos, diferentemente de um restaurante bem localizado, que precisa investir em fachada e outros serviços", completa Mariana Piton Hakim, pesquisadora do LabMAS e primeira autora do trabalho. "Por outro lado, em São Paulo, observamos que os restaurantes convencionais apresentavam número de estrelas [avaliação de usuários] superior, além de contarem com mais avaliações nas três cidades, o que pode estar relacionado ao menor volume de venda das dark kitchens e ao fato de que restaurantes convencionais geralmente são mais conhecidos."

O cheiro da comida e o barulho das motos de entregadores se tornou um incômodo para os vizinhos das dark kitchens - iStock - iStock
O cheiro da comida e o barulho das motos de entregadores se tornou um incômodo para os vizinhos das dark kitchens
Imagem: iStock

Outros dados extraídos da pesquisa, financiada pela FAPESP, foram os tipos de comida mais servidos pelas dark kitchens (na capital, culinária brasileira, em 30,3% dos casos; enquanto nas cidades menores, lanches e sobremesas, em 34,7% dos casos) e seus modelos de organização: independente (cozinhas alugadas por uma marca exclusivamente para uso próprio, podendo ou não ter fachada); 'shell' ou 'hub' (compartilhada por mais de uma cozinha/restaurante); franquia (com mais de um ponto de venda, redes sociais bem estabelecidas e podendo estar presente em diferentes cidades); cozinha virtual em um restaurante-padrão com menu diferente (instalada no mesmo endereço de um restaurante físico, mas com nome e serviço diferentes); cozinha virtual em um restaurante-padrão com menu semelhante, mas nome diferente (montada no mesmo endereço de um restaurante físico, com mesmo tipo de cardápio, mas com nome diferente); e doméstica (localizadas em prédios residenciais ou casas).

Percepção do consumidor e questões sanitárias

Embora as dark kitchens apareçam com frequência nos noticiários pelas brigas com vizinhos por conta do barulho, mau cheiro e trânsito de motoqueiros em suas redondezas residenciais, os pesquisadores levantam ainda outra questão a ser esclarecida: suas condições higiênico-sanitárias.

"Percebemos que esse modelo de restaurante parece estar às margens das legislações - não porque seja ilegal em si, mas porque ninguém nunca se debruçou para entender direito como o setor funciona e como pode ser aprimorado", diz Cunha. "Não queremos dificultar seu trabalho, inclusive porque sabemos que traz recursos e é uma tendência que veio pra ficar, mas entender seu impacto na economia e também viabilizá-lo de forma legal para que possa ser acessado adequadamente pela vigilância sanitária, que hoje tem dificuldades em fiscalizar cozinhas domésticas, fortalecendo o setor e trazendo proteção ao consumidor."

Os pesquisadores têm preocupações sanitárias em relação aos alimentos produzidos em massa pelas dark kitchens - doble-d/Getty Images/iStockphoto - doble-d/Getty Images/iStockphoto
Os pesquisadores têm preocupações sanitárias em relação aos alimentos produzidos em massa pelas dark kitchens
Imagem: doble-d/Getty Images/iStockphoto

Esse deve ser o foco dos próximos estudos do grupo, que pretende, ainda este ano, visitar dark kitchens para observar de perto seu funcionamento, qualidades e defeitos e entender a percepção do produtor. A expectativa é de que serão constatadas falhas sanitárias nos casos de cozinhas domésticas, como presença de animais e famílias, bem como geladeiras de uso único, mas também exemplos de como driblar essas fraquezas e trazer potenciais sugestões para o setor.

Os pesquisadores lembram ainda que a situação é agravada pelo fato de o consumidor não entender exatamente o conceito de dark kitchen e desconhecer eventuais riscos para o alimento e para sua família, de acordo com um estudo anterior do grupo, divulgado na revista Food Research International.

Não existe legislação específica para a operação das dark kitchens ou 'cozinhas-fantasma' - lechatnoir/Getty Images - lechatnoir/Getty Images
Não existe legislação específica para a operação das 'cozinhas-fantasma'
Imagem: lechatnoir/Getty Images

"A percepção dos consumidores é ambígua: ao mesmo tempo em que acreditam que uma refeição pedida pelo iFood traga uma certa chancela de proteção, não consideram que o aplicativo tenha responsabilidade pela segurança do alimento", diz Hakim.

O estudo está sendo realizado em parceria com a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), além de duas instituições de ensino internacionais (universidades de Central Lancashire, no Reino Unido, e Gdansk, na Polônia), o que permitirá a comparação do setor em diferentes países.

Os consumidores não responsabilizam entregadores e o iFood pela qualidade do alimento, embora enxerguem no serviço uma proteção - FG Trade/Getty Images - FG Trade/Getty Images
Os consumidores não responsabilizam entregadores e o iFood pela qualidade do alimento, embora enxerguem no serviço uma proteção
Imagem: FG Trade/Getty Images

A reportagem entrou em contato com a plataforma iFood por meio de sua assessoria de imprensa, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

O artigo "Exploring dark kitchens in Brazilian urban centres: A study of delivery-only restaurants with food delivery apps" pode ser lido em: www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S0963996923005148?via%3Dihub.

Este texto foi originalmente publicado por Agência FAPESP de acordo com a licença Creative Commons CC-BY-NC-ND. Leia o original aqui.