Vai um gim-tônica raiz? Como drinques famosos mudaram com o tempo
Se você viajasse no tempo, digamos para um bar 20 anos atrás, e pedisse um gim-tônica (então um drinque exótico e fora de moda) talvez teria certa dificuldade em reconhecer a bebida. É que o G&T que fez tantas cabeças nos verões pré-pandêmicos é uma invenção recente: trata-se de uma apropriação espanhola daquela mistura colonial dos tempos da Índia britânica.
Em meados do século 19, a fim de proteger seus corpos da malária, os ingleses que viviam no subcontinente indiano consumiam casca de cinchona, planta rica em quinina, que é eficaz no combate à doença mortal. A cinchona é amarga que só, então eles passaram a consumi-la junto com seu destilado nacional, o gim.
Em 1858, surgiu um refrigerante de quinina, e pimba. Caminho aberto para o gim-tônica, o drinque que salvou o Império Britânico.
A partir de então, a mistura de gim e um refrigerante rico em quinina ficou popular em diversos lugares.
Em meados do século 20, uma forma comum de preparo de gim-tônica pedia uma parte de gim, outra de tônica, outra de suco de limão. Essa versão era uma pancadinha mais forte e amarga do que o que se vê hoje em dia.
A receita do "gim-tônica raiz" nada mais é que "em um copo longo com gelo, acrescente uma rodela de limão e 50 ml de gim seco (london dry). Complete com água tônica", segundo o "Manual del Bar", da Asociación Mutual de Barmen y Afines.
Na virada para o século 21, ele era uma raridade nos balcões, reclusa aos bares particulares de quem era chegado a uma água tônica batizada com álcool. Mas, a partir do renascimento da coquetelaria, que trouxe junto o gim de volta à moda, o gim-tônica ressurgiu maior, mais colorido, mais aromático, mais leve e mais fotogênico. Menos britânico e mais ibérico.
Reza a lenda que a nova versão surgiu na cozinha como efeito colateral de pratos espanhóis. Ao picar e preparar ingredientes, chefs jogavam um ou outro temperinho em suas próprias beberagens e, na tentativa e erro, criaram o gim-tônica espanhol.
Aproveitando o vácuo da impopularidade de seu antecessor tradicional, o drinque acabou tão onipresente que dispensa o diferencial gentílico. Ou seja, não precisa pedir um "gim-tônica espanhol". Basta "gim-tônica" e já sabemos o que virá: uma grande taça, cheia de gelo, com as cores e perfumes que a criatividade do bartender permitir e o seu gosto quiser.
Confira outros drinques clássicos que já foram bastante diferentes:
Moscow Mule
Outro caso de coquetel obscuro que entrou na moda na década passada de maneira diferente da tradicional. A diferença é que a novidade é brasileira e não ganhou o mundo, pelo menos ainda não.
O moscow mule com a espuma de gengibre é criação do mixologista Marcelo Serrano, um dos melhores bartenders do Brasil. Por aqui, ela é onipresente: seja em bares da moda ou em bailes de formatura e casamento (onde o drinque ganha muitas vezes uma versão tosca e artificial da espuminha), o moscow mule BR tem espuma.
A invenção de Serrano nasceu por necessidade, porque ginger beer, uma bebida fermentada de gengibre e um dos ingredientes do coquetel, é artigo raro por aqui. Então, em outros países, a canequinha de cobre é servida sem a espuma: só vodca, ginger beer e limão.
O moscow mule é um curioso caso de capitalismo de gosto russo. Nasceu de uma campanha de marketing da Smirnoff (marca que nasceu em Moscou mas deixou o país após a Revolução Russa) para promover vodca nos Estados Unidos nos anos 1940.
Mesmo esse moscow mule original, no entanto, é uma adaptação de outro coquetel, o mamie taylor. Criada no fim do século 19 para Mayme Taylor, uma famosa atriz e cantora de ópera, a receita levava uísque em vez de vodca.
A receita para o "Moscow Mule pré-histórico", segundo o livro "Standard Cocktail Guide", de 1944, é: "Esprema meio limão em um copo longo. Adicione cubos de gelo, duas doses de uísque escocês e complete com ginger beer ou ginger ale."
Sazerac
Coquetel oficial de Nova Orleans, ele mudou por causa de conjunturas maiores, não apenas por modismo. O sazerac original, em meados do século 19, era feito com um conhaque específico importado por uma firma da cidade americana, o Sazerac-de-Forge et Fils.
Nos anos 1870, o drinque ganhou um toque de absinto, o que fez toda a diferença. Mas, na mesma época, a França vivia uma época tensa. Dessa vez, não era uma revolução, embora a guilhotina continuasse em atividade. Era a praga da filoxera, um inseto que em alguns anos exterminou 40% das videiras da Europa.
Conhaque é o brandy produzido nos arredores da cidade francesa de Cognac. Um brandy é, por definição, um destilado de vinho. Se a produção de vinho estava debilitada, imagine a de brandy. Então, do outro lado do Atlântico, para suprir a falta de conhaque, os bartenders da Louisiana começaram a usar uísque de centeio (rye).
Desde então, o preparo de sazerac leva brandy ou rye, além de cubo de açúcar, twist de limão e do bitter Peychaud's. Com a proibição de absinto no mercado americano por quase um século, outra bebida anisada, como pastis, entrava no lugar. Em 1934, a Sazerac Company criou seu próprio substituto, o Herbsaint, para ocupar o vácuo do absinto.
A receita do Sazerac vintage, do livro "The World Drinks and How to Mix Them", de 1908, é a seguinte: "Em um copo misturador cheio de gelo picado, coloque uma colher (chá) de xarope de goma, três gotas de bitter Selner e uma dose de conhaque Sazerac. Mexa bem, coe para um copo de coquetel pré-lavado com uma pitada de absinto, esprema um pedaço de casca de limão por cima e sirva."
Dry Martini
"O dry martini é, basicamente, uma mistura de vermute e gim", escreveu o crítico Michael Jackson em seu "Guia Internacional do Bar", em 1979. "Mas a questão que cria polêmica entre connaisseurs e barmen é: quanto vermute usar?". Há mais de 40 anos o autor falava de um ponto que já era e continua sendo debatido.
Um século atrás, era comum a proporção um para um no dry martini, por exemplo. Hoje, isso constitui um drinque à parte, o 50/50 martini.
Com o passar do tempo, a quantidade de vermute foi diminuindo. Dois, quatro, seis, sete partes de gim para uma de vermute, até praticamente desaparecer, o que rendeu imagens bem-humoradas. Um barman famoso apenas fazia a sombra da garrafa de vermute cair na taça. Outro se curvava em direção à França enquanto misturava o gim com gelo. Já o churchill martini deve ser feito apenas com gim gelado enquanto olha uma garrafa fechada de vermute ou faz uma saudação discreta à França, como faria o primeiro-ministro Winston Churchill.
A referência à França se deve porque, originalmente, os vermutes franceses eram os preferidos na receita. Só mais tarde as garrafas de uma empresa italiana que coincidentemente se chamava Martini foram adotadas nos bares. Coincidência porque o nome do coquetel se deve, segundo algumas das versões mais aceitas, a um bartender chamado Martini ou à cidade californiana de Martinez, não à fabricante Martini.
O serviço também mudou ao longo do tempo. Em meados do século 20, as taças eram pequenas para os padrões atuais. Isso ajuda a explicar, pelo menos até certo ponto, a ferocidade com que os personagens da série "Mad Men" engoliam seus martinis nos almoços de trabalho.
O tamanho das taças aumentou, diminuiu e aumentou de novo. A proporção de vermute também seguiu assim: cresceu, despencou, cresceu, caiu de novo.
Outro detalhe importante é que o "dry" não era tão necessário. Vermutes doces e gim old tom, um tipo menos seco que o london dry, faziam sucesso no começo do século 20.
O martini das antigas — nada seco — seguia a seguinte receita, segundo o "American Bar-Tender", de 1891: "Em um copo misturador, coloque um pedaço de gelo, quatro gotas de angostura, meia dose de gim old tom, meia dose de vermute italiano e um pedaço de casca de limão torcida. Mexa bem, coe em um copo pequeno e sirva com água gelada."
White Lady
Criado em 1919 no Ciro's, em Londres, o coquetel branco era feito com licor de menta, triple sec (tipo de licor de laranja do qual Cointreau é a marca mais famosa) e suco de limão. Outras versões também tinham brandy. Uns dez anos depois, em Paris, a receita ganhou sua feição atual, com gim no lugar do licor de menta.
A origem do nome seria uma homenagem a uma mulher que, vestida de branco, salvou soldados britânicos de uma prisão turca na Primeira Guerra Mundial. Outra versão diz que o drinque era uma referência à escritora Zelda Fitzgerald.
Para fazer o White Lady da era do jazz, siga a receita do "ABC of Mixing Cocktails", de 1923: "No copo misturador, adicione uma parte de brandy, uma de licor de menta e quatro de Cointreau. Bata bem e coe."
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