No passado, passaporte já teve até descrição: 'Nariz grande, boca torta'
"Quando cheguei às províncias a ocidente do Eufrates, entreguei as credenciais do rei aos governadores" Nessa passagem bíblica, o Livro de Neemias, que trata da reconstrução da muralha de Jerusalém, traz uma das menções mais antigas daquilo que conhecemos hoje como passaporte.
Neemias era um alto funcionário do rei persa Artaxerxes no século 5º a.C. Na história, ele pede autorização ao monarca para ajudar a reconstruir a cidade de seus antepassados, que no século anterior havia sido conquistada pela Babilônia.
"Que a vossa majestade se digne dar-me cartas para os governadores a ocidente do rio Eufrates, para que me deixem atravessar os seus territórios na viagem para Judá", escreveu.
Cartas de salvo-conduto, como a de Neemias, funcionaram por muitos séculos como instrumento para o trânsito seguro de um indivíduo ao entrar e sair de um reino. Na prática, elas não eram muito mais do que um acordo de cavalheiros por escrito, em que dois governantes que reconheciam suas mútuas autoridades estavam de acordo que o trânsito daquele súdito entre suas fronteiras não provocaria uma guerra desnecessária.
É o que explica o britânico Martin Lloyd no livro "The Passport", sobre a história do documento.
No século 16, o termo "passaporte" começou a ser usado. A palavra vem do francês antigo "passeport", porque designava o documento que autorizava o sujeito a passar por um porto e sair do país.
A outra versão da origem do termo é muito semelhante e cita a mesmíssima função, mas em vez de sair pelo porto, a pessoa sai pela muralha da cidade, que os franceses também chamavam de "porte".
Conforme a comunidade internacional, os Estados modernos, as fronteiras mais bem definidas, o comércio e as relações internacionais e o intercâmbio cultural ganharam mais contornos, o documento ficou mais importante.
Em 1820, o Brasil, no contexto da abertura dos portos para as nações amigas de Portugal, em 1808, passou a exigi-lo:
"Julgando indispensavel nas circumstancias actuaes, á segurança e conservação da publica tranquilidade deste Reino, que haja e mais exacto conhecimento de todas as pessoas que a elle vierem; sou servido ordenar o seguinte:
Que a nenhuma pessoa, seja nacional ou estrangeira, de qualquer classe ou condição que fôr, se permittirá que desembarque e possa entrar em parte alguma deste Reino no Brazil, sem que venha munida e apresente o competente passaporte ou portaria, que verifique a sua qualidade, logar donde sahiu, e destino a que se dirige."
Decreto de 2 de dezembro de 1820
No fim do século, o fluxo imigratório era tão grande que a Constituição de 1891 dispensou o documento.
Em tempo de paz, qualquer pessoa pode entrar no território nacional ou dele sair, com a sua fortuna e bens, quando e como lhe convier, independentemente de passaporte" Artigo 72, parágrafo 10
O passaporte como conhecemos
Em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, o documento voltou a ser obrigatório. Após o conflito, o mundo era outro — e o passaporte também.
A Liga (ou Sociedade) das Nações, fundada em 1920 com a nada tranquila missão de manter a paz mundial, estimulou a ideia de se criar um padrão global para o passaporte, algo que ainda levaria um tempo para se concretizar.
Hoje nós reconhecemos um documento assim de longe: aquela cadernetinha com um brasão estampado, a foto da pessoa, o nome dela e outras informações básicas, carimbos dos países por onde passou etc.
Mas, cem anos atrás, os passaportes tinham, digamos assim, muito mais liberdade editorial. O passaporte britânico, por exemplo, era uma página dobrada em oito partes guardada em uma capa de papelão. Além da foto e da assinatura do cidadão, vinha com descrições fíisicas, como nariz grande e cabelo loiro, e sinais particulares, como boca torta ou cicatriz.
Tais descrições eram um resquício dos tempos em que os documentos não tinham fotos. "Não sei como as pessoas conseguiam entender que aquele indivíduo na frente delas era o indivíduo descrito no passaporte", tuitou o colecionador Neil Kaplan, que mantém um site e uma conta no Twitter para exibir e explicar sua vasta coleção de passaportes antigos acumulada ao longo de mais de 20 anos.
Quando as fotografias começaram a ser adotadas no passaporte, não havia nada que lembrasse a padronização careta a que nos submetemos para fazer documentos.
Sem regras, as pessoas tinham apenas que entregar uma foto, e assim o faziam. Posavam de chapéu, de véu, tocando violão, remando. Reaproveitavam uma fotografia antiga, recortando o próprio rosto, ou arrancando a foto de um outro documento.
Segundo Kaplan, isso era comum entre refugiados, que tinham motivos de sobra para temer sair para encomendar uma foto. Afinal, era algo muito mais complexo, trabalhoso e caro se comparado à instantaneidade das imagens digitais de hoje, feitas com aparelhos que cabem no bolso e preservadas digitalmente na nuvem. Muita gente simplesmente não tinha dinheiro de sobra para isso.
Comando e controle
O passaporte pode ter boas doses simbólicas de liberdade, sobre o direito de ir e vir, mas não era assim que muitas pessoas viam.
Nos Estados Unidos, uma lei entrou em vigor em 1924 com o intuito de lidar com uma "emergência": o alto fluxo de imigrantes de países que ameaçavam o "ideal hegemônico americano". A melhor forma de controlar isso e filtrar as pessoas que podiam entrar no país era por meio de um documento que escancarasse o país de origem delas. Cem anos atrás, o passaporte era um instrumento de controle.
Além disso, o conceito de individualidade não era universal. Mulheres casadas, nas raras vezes em que viajavam sozinhas, não tinham direito a um passaporte com seu nome próprio, mas com o do marido: senhora Fulano de Tal.
Nos EUA, isso só mudou em 1937. No Brasil, onde elas também precisavam de autorização do marido para viajar, a regra só caiu com o Estatuto das Mulheres Casadas, de 1962.
Passaportes coletivos também eram comuns, especialmente para grupos de refugiados que precisavam de uma saída rápida do país, como os judeus da Europa entreguerras. Mas o passaporte coletivo também tinha uso em realidades não trágicas, como grupos de trabalhadores e times esportivos que precisavam viajar.
Para os privilegiados de sempre, a novidade de precisar comprovar a identidade era muitas vezes ofensiva. Em 1929, o jornal "New York Times" reportou como obter um passaporte era "uma árdua provação" e que os estrangeiros lidam melhor com isso porque já estão acostumados com a burocracia que irrita o cidadão americano.
No ano seguinte, o jornal falou que as fotografias de passaportes são "notoriamente desagradáveis e nada lisonjeiras".
Um homem educado parece um bandido, uma senhorita de olhos brilhantes se torna uma imbecil de feições pesadas. Poucos viajantes sentem algo além de uma pontada de uma terrível surpresa, quase desacreditando, ao olhar pela primeira vez a fotografia que os identificará em um país estrangeiro"
Pelo visto, a insatisfação quase generalizada com fotos de documentos é algo antigo. No mesmo artigo, o diário fala que tirar o passaporte é um tormento que gera ansiedade na classe média.
Porém, nos anos seguintes, com a consolidação de uma penca de documentos que exigiam a identificação fotográfica, da habilitação para dirigir a carteirinhas de clubes, o assunto deixou de ser polêmico e foi assimilado pela vida cotidiana. Só a frustração de ver sua foto em um novo documento ficou.
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