Sem oxigênio, brasileiro usa cilindros deixados no Everest para sobreviver
O fotógrafo e cinegrafista Gabriel Tarso, natural de Cruzeiro (SP), teve um imprevisto no Monte Everest, que quase tirou sua vida no final de maio deste ano. Com um problema no cilindro de oxigênio, ele ficou sem o artifício por cerca de duas horas, sozinho a mais de 8 mil metros de altitude, na chamada zona da morte. A Nossa, ele conta a sua história:
Escalo há muitos anos. Como nasci e cresci na região da Serra da Mantiqueira, no interior de São Paulo, desde muito novo vou para as montanhas da região. Já como fotógrafo e cinegrafista, eu trabalho profissionalmente há mais de dez anos.
Trabalhei em diversos projetos relacionados a esportes outdoor, como escalada em rocha e corridas de montanha, mas foi em montanhas de altitude que eu me especializei.
Neste ano, estive no topo do Monte Everest, a 8.849 metros de altitude, pela terceira vez. E, como nas duas vezes anteriores (em 2021 e em 2022), fui a trabalho para documentar o projeto de alguém.
O empresário carioca Bernardo Fonseca me contratou em março deste ano. Ele tinha como objetivo escalar duas montanhas (Everest e Lhotse) para chamar atenção da população sobre o lixo que é deixado por lá.
Para o Bernardo, era importante ir com alguém que já tivesse certa experiência, afinal, era a primeira vez dele, e estar com uma pessoa confiável pode ser fundamental nos momentos decisivos da escalada. Na equipe, éramos em cinco pessoas: eu, ele e três sherpas (povo originário tibetano, a maioria trabalha nas expedições como guia).
Durante toda a escalada, eu fiquei mais afastado do grupo. Essa era a dinâmica que havíamos adotado em toda a expedição, principalmente porque quando estou na montanha, sempre paro para fotografar.
Apesar dos riscos do meu trabalho, eu não imaginava que, dessa vez, viveria um dos momentos mais tensos da minha vida.
Fiquei por cerca de duas horas sem oxigênio suplementar na "zona da morte" do Everest, um ambiente muitas vezes fatal.
O primeiro alerta
Depois de mais de 40 dias escalando na região, chegamos ao acampamento base do Everest, a 5.270 metros de altitude. A partir daí, levaríamos mais quatro dias para chegarmos ao topo (8.849 metros).
A "zona da morte" começa aos 8 mil metros, quando os cilindros de oxigênio se fazem necessários. Aos 8.500, os trocamos pela primeira vez.
Naquele momento, percebi que estávamos num ritmo inferior ao que deveríamos estar.
Bernardo sentia muito frio e cansaço, estava com dificuldades de se deslocar e, por conta de um problema de vedação nos óculos dele, precisei andar passo a passo com ele durante horas, para que ele pudesse enxergar o caminho.
Além disso, os cilindros estavam com quase metade da pressão que deveriam estar. Apesar de ser algo incomum, decidimos continuar a escalada. Já estávamos chegando no cume, por volta das 4h30 da manhã.
Levamos um tempo maior que o previsto para chegar ao cume, um total de 13 horas — que normalmente leva dez. Subimos mais um pouco e, por fim, eu estava pela terceira vez no topo do Everest. Foi uma emoção indescritível.
Ficamos lá em cima, fiz as fotos e, depois de um tempo, Bernardo e os sherpas desceram. Eu desci em seguida, separado do grupo. Tudo seguia bem até que, em um dado momento, comecei a sentir falta de ar.
O acidente
Era 9 horas da manhã. Comecei a ficar um pouco mais lento e, ao ver o medidor do cilindro, tomei um susto. O oxigênio, que era para durar cerca de dez horas, havia durado bem menos, apenas duas, até acabar. E ainda tinha bastante descida pela frente.
Tentei me comunicar com um nepalês que estava próximo, mas ele era um garoto novo, em sua primeira experiência no Everest. Pedi por oxigênio, mas ele não falava inglês, não entendeu o que estava acontecendo, e foi embora.
Então a minha saga começou. Uma coisa é se preparar para fazer uma montanha sem oxigênio e se aclimatar para isso. Outra, completamente diferente, é estar usando e, do nada, ele acabar. É um baque muito grande para o organismo.
Os meus sentidos já estavam começando a ficar comprometidos. Com a falta de oxigênio suplementar e dificuldade para respirar, a percepção cognitiva diminuiu, as pernas tremiam, a respiração ficou ofegante e a visão, turva.
Como nós fomos um dos últimos grupos a fazer o cume nesse dia, a maioria das expedições já tinha descido. Não tinha mais para quem pedir ajuda naquele momento.
O que me salvou foi agir e pensar rápido. Mentalmente, eu só pensava em não deixar aquela situação me consumir a ponto de desmaiar e sabia que precisava tentar descer o mais rápido possível.
Mesmo sem força para ficar em pé, preparei meu equipamento de segurança e fui descendo os trechos rochosos em rapel, desequilibrando e caindo, mas preso à corda.
Foram cerca de três rapeis nessa situação de desorientação em que eu estava. No final do terceiro rapel, avistei alguns cilindros deixados por outros alpinistas e que são recolhidos posteriormente pelos sherpas para serem reutilizados.
Eu tive sorte de ter encontrado eles antes que fossem recolhidos. Fiz três tentativas e dois estavam vazios, mas um tinha 3% de oxigênio e isso foi suficiente para eu respirar e recuperar os meus sentidos por um tempo.
Fiz contato via rádio com a base, mas infelizmente não tive retorno, muito provavelmente por conta do local onde eu estava. Confesso que foi decepcionante não conseguir comunicação.
Foi graças à experiência que eu adquiri nos últimos anos, um pouco de sorte e ao Jen Jen, um dos membros do nosso grupo, que eu sai dessa vivo para contar a história. Ele é o sherpa que voltou para me procurar e me ajudou a descer em segurança.
O Jen Jen acompanhou o Bernardo e retornou quando percebeu minha ausência. De repente ele apareceu a alguns metros de onde eu estava. Nos vimos, mas ele não entendia que eu estava sem oxigênio.
Nesta hora, foi como cortar um cordão umbilical porque eu precisava caminhar até ele. Alguns passos adiante, com muito esforço, consegui. Ele rapidamente passou a sua máscara de oxigênio para mim e esse momento foi muito emocionante.
Ele nem pensou em não compartilhar o oxigênio dele comigo. Foi um ato de nobreza da parte dele. Imediatamente, voltei a ter forças e logo chegamos onde tinham outras garrafas estocadas.
Mais à frente, encontramos o Bernardo e os outros dois sherpas e, dali em diante, voltei bem, com energia, sentindo minhas pernas. Nessa hora eu já sabia que não faríamos mais o Lhotse, a outra montanha.
Dormimos no acampamento três (7.300 metros de altitude) e, na manhã seguinte, comecei a cuspir sangue. Entendi que, além de estar bem fraco, alguma outra coisa não estava bem.
Dali em diante, a missão foi chegar ao acampamento dois (6.400 metros). De lá, chamamos por rádio o helicóptero que me levou à cidade de Lukla, onde a trilha para o acampamento base do Everest começa.
No hospital da cidade, vi que meu pulmão estava realmente afetado. Após mais um voo de transferência, aterrissei em Kathmandu (capital do Nepal), e lá passei quatro dias internado no CIWEK, especializado em casos ocorridos em altitude.
Eu estava com pneumonia. Agora, em um quarto de hotel, posso dizer que não carrego sequela alguma. Recuperado, me considero muito privilegiado por estar aqui contando essa história.
Não culpo ninguém pelo que aconteceu, tampouco digo que a montanha é implacável. Ela está lá sendo o que é. Por isso, a minha admiração e o meu respeito por esse lugar sagrado só aumenta a cada ano.
Afinal, é aqui que eu tenho sido cada vez mais intensamente convidado a me transformar na melhor versão de mim mesmo. E se alguém me perguntar se eu voltaria lá pra cima outra vez, eu diria: É claro que sim!
Segunda vez em menos de um ano
Passei por uma situação de grande perigo na montanha Manaslu, a oitava mais alta do mundo, também no Nepal, em setembro de 2022, quando o meu grupo foi surpreendido por uma avalanche que levou a vida de um amigo e feriu outras pessoas.
Eu saí ileso. Acho que esse episódio, sim, pode ser comparado ao que vivi no Everest neste ano.
Veja o vídeo desse resgate:
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