A ilha com depósitos criados para náufragos sobreviverem: que lugar é esse?
O litoral da Nova Zelândia guarda um passado de história curiosa: entre 1880 e 1929 — de acordo com o Departamento de Conservação do país — o governo local construiu 'depósitos' em parte de sua costa para abrigar os sobreviventes de naufrágios que aconteciam em suas revoltas águas.
Estas 'cabanas salva-vidas' eram não apenas um lugar para os marinheiros descansarem protegidos dos elementos, como chuva e ventos, mas também uma fonte de recursos para mantê-los vivos: os espaços continham mantimentos, utensílios imprescindíveis para a sobrevivência em áreas inóspitas e até roupas e sapatos ideais para suportar temperaturas nada amenas.
A iniciativa foi necessária graças aos perigos que a navegação na rota do Grande Círculo oferecia, em águas das Ilhas Subantárticas pouco documentadas em suas adversidades à época, como fortes ventos, baixa visibilidade, de acordo com o Museu da Nova Zelândia. Ela foi inspirada por naufrágios que afligiram o país a partir da década de 1860 — dois dos mais conhecidos são os dos navio Grafton e Invercauld, o primeiro em janeiro e o segundo em maio de 1864.
Segundo a revista New Zealand Geographic, o Grafton partiu de Sydney no final de 1863 com cinco homens a bordo e naufragou em Carnley Harbour, entre Auckland Island e Adams Island. Nenhum dos tripulantes se afogou e durante 19 meses eles se organizaram em esforços para a sua sobrevivência, que incluíram a construção de cabanas a partir de destroços do próprio navio e a divisão de tarefas em busca de alimentos.
Além de buscarem vegetação que fosse apropriada para consumo, eles ainda matavam juntos filhotes de leões-marinhos "não sem remorso", segundo escreveu o marinheiro François Édouard Raynal em seus diários, para comê-los e passaram a trabalhar no reparo de um bote salva-vidas.
Com certeza vivemos juntos desde o naufrágio em paz e harmonia — devo ainda dizer em verdadeira e honesta irmandade; mesmo assim aconteceu às vezes que um ou outro cedeu a uma crise de temperamento e deixou escapar uma palavra nada gentil, que naturalmente provocou uma não menos desagradável discussão. Mas se hábitos de amargura ou animosidade tivessem sido alguma vez estabelecidos entre nós, as consequências não poderiam ter sido mais desastrosas; nós precisávamos tanto uns dos outros!" Escreveu Raynal em texto obtido pela New Zealand Geographic.
A harmonia descrita por Raynal garantiu o resgate dos cinco em julho de 1865, depois que três conseguiram chegar no bote reparado até Stewart Island após cinco dias no mar. Dali, o capitão Thomas Musgrave arranjou a busca pelos outros dois companheiros que ficaram para trás. Os rumos da tripulação do Invercauld, contudo, foram drasticamente diferentes.
Dos 25 marinheiros a bordo, 19 chegaram até a costa inicialmente, mas apenas três sobreviveram após o naufrágio em Auckland Island. O capitão do navio, George Dalgarno, assim como seu primeiro e segundo marinheiros, Andrew Smith e James Mahoney, decidiram manter a hierarquia da embarcação mesmo em terra e insistiam em delegar funções aos seus subordinados.
Apesar disso, cada um passou a tomar iniciativas próprias ou a rejeitar diretrizes e uma desordem se instalou, segundo relatos obtidos pela NZ Geo. Não demorou portanto que o tópico de canibalismo fosse cogitado, embora rejeitado em primeiro momento. Brigas que quase terminaram em mortes irromperam entre os marinheiros e, apesar de terem conseguido pescar e colher algum mantimento, membros da equipe começaram a morrer de fome ou congelados.
Ainda durante o período de isolamento próximos à tripulação do Grafton — embora não tenham tomado conhecimento do primeiro naufrágio —, os navegantes encontraram um assentamento abandonado com utensílios e cabanas. O que se sabe, contudo, é que eles não aproveitaram as instalações e resolveram aguardar pelos moradores que há muito não ocupavam a região.
A certa altura, o marinheiro William Harvey foi encontrado comendo os restos mortais do companheiro Fritz Hawser, que morreu após uma briga entre os dois em uma das acomodações achadas. Um ano depois, apenas três sobreviventes foram resgatados pelo navio português Julian: o capitão George Dalgarno, o primeiro-marinheiro Andrew Smith e um de seus subordinados, Robert Holding.
Os depósitos e o Dundonald
Após tantas perdas, a Coroa britânica — que administrava a colônia à época — e o governo provincial da Nova Zelândia tomaram providências para instalar os "Castaway Depots" ('Depósitos para Naufragados') pelo trecho mais indomável de seu litoral. Os primeiros depósitos foram distribuídos pelos arquipélagos ao sul: Auckland, Campbell, Antipodes e Bounty Islands.
Ficaram responsáveis pelas obras as equipes dos navios a vapor do governo, GSS Stella e Hinemoa, que criaram uma verdadeira rede na região subantártica. No início, além do abrigo básico, apenas pequenos pacotes de mantimentos e animais como ovelhas e cabras eram soltos nas ilhas, para servirem de suportes aos marinheiros.
Em 1877, o governo central da colônia reconheceu a responsabilidade sobre a questão e passou a realizar viagens regulares a cada seis meses para abastecer as instalações e procurar sobreviventes que pudessem estar "hospedados" nas construções, de acordo com o Departamento de Conservação.
A partir de então, a variedade de itens à disposição de sobreviventes cresceu: biscoitos, carne enlatada, fósforos, utensílios de cozinha, ferramentas, kits de primeiros socorros, linhas de pesca, ganchos, agulha e linha, agulha de vela, jaquetas, camisas de flanelas, meias, camisas de sarja e botas à prova d'água eram distribuídas por cada endereço.
Um dos primeiros e mais famosos navios a fazer uso dos depósitos para garantir a sobrevivência de seus marinheiros foi o Dundonald, que naufragou próximo à Disappointment Island em março de 1907, após cerca de 20 dias no mar. Dos 28 a bordo, 17 conseguiram nadar até a costa e sobreviveram, nos primeiros três dias, comendo albatrozes crus que voavam pela área.
Os navegantes construíram abrigos, utensílios e ferramentas a partir dos destroços do navio, restos de aves e pedaços de árvores. Porém, o que definiu o destino dos marinheiros foi o conhecimento que a 8 km de distância, em outra ilha — Auckland Island —, havia um depósito. Eles iniciaram então um longo processo de construção de três barcos (dois deles afundaram) que pudessem levá-los até os suprimentos.
Sabíamos que o depósito estava em outra ilha, que era a cerca de 6 milhas de distância, mas não sabíamos como cruzar... Em julho, três homens construíram um barco de tecido e gravetos. Para fazer isso, tivemos que juntar pedaços de nossas roupas e lençóis e costurá-los e a tarefa era ainda mais difícil porque o costureiro náutico e o carpinteiro tinham se afogado." Relatou o marinheiro Charles Eyre ao jornal Auckland Star em 2 de dezembro de 1907.
Em outubro, sete meses após o naufrágio, os sobreviventes conseguiram chegar a Auckland Island e racionaram os alimentos que encontraram enquanto aguardavam pela passagem de um dos navios do governo, segundo o Museu da Nova Zelândia. Em 16 de novembro de 1907, o Hinemoa — que fazia uma expedição científica — chegou por ali e resgatou os 15 remanescentes.
Também foi recuperado o corpo do primeiro-marinheiro Jabez Peters, que havia morrido de hipotermia e enterrado em Disappointment Island. Ele foi levado a Port Ross, para ser enterrado em um pequeno cemitério com as outras vítimas do naufrágio em uma cerimônia acompanhada pelos membros da expedição, os sobreviventes e a tripulação do Hinemoa.
Já o barco construído por eles para chegar ao depósito foi colocado em exibição no The Canterbury Museum em Christchurch, para angariar fundos para a equipe do Dundonald. Apesar de toda a notoriedade e o heroico propósito dos depósitos, eles foram aposentados pelo governo neozelandês no fim dos anos 20 quando os navios pararam de realizar a rota do Grande Círculo.
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