Munguzá salgado é prato junino para arrasta-pé de família paraibana 'raiz'
Festa junina, na Paraíba, é assunto mais do que sério. O estado se gaba de realizar o maior São João do mundo, que acontece na cidade de Campina Grande há exatos 40 anos — a festa dura o mês inteiro, com shows de grandes estrelas populares que reúnem mais de 57 mil pessoas por noite.
Mas é bem longe dali, nos quintais dos bairros mais afastados e nos vilarejos do sertão, que acontecem os arraiais e arrasta-pés que o paraibano raiz entende com uma autêntica festa junina.
Tudo gira ao redor da fogueira. Tem muita música, bandeirinhas e balões coloridos, vestidos rodados de chita e danças de quadrilha, traços parecidos com os dos outros festejos que pipocam pelo país em homenagem a São João, São Pedro e Santo Antônio — afinal, todos eles têm sua origem nas festas religiosas portuguesas.
Mas um coração paraibano reconhece uma identidade, um temperinho especial, que só as festas juninas de sua terra têm.
São diferentes, as tradições são outras. A gente comemora durante o mês inteiro, do primeiro ao último dia, e não precisa de bebidas para se aquecer, como o quentão, porque não faz frio. Também dançamos de outro jeito. A quadrilha faz parte da gente, não tem o quê folclórico das danças do pessoal do Sudeste", diz o chef paraibano Onildo Rocha, 47.
Depois de ganhar prêmios e fama na capital João Pessoa, à frente do restaurante Cozinha Roccia e do bufê Casa Roccia, Onildo mudou-se para São Paulo em 2021, onde comanda o restaurante Notiê. Mas ele é tão apaixonado pela temporada das festas juninas que voa para casa sempre que junho começa.
'Arraiá' em casa
Esse amor começou muito cedo, ainda na infância. Caçula de três irmãos, filho de um bancário, o seu Onildo, e de uma professora de artes, dona Marinette, o pequeno Onildo nasceu e cresceu em um apartamento na capital da Paraíba, cercado pelo asfalto — daí o assombro quando foi levado à sua primeira festa junina de interior.
O encontro familiar acontecia no sítio de um tio em Patos, cidade a 300 quilômetros da capital onde nasceu sua mãe, e nunca mais saiu da sua memória.
Eu tinha uns 5, 6 anos, e achei aquela visão chocante. Me deparei com uma cozinha arcaica, as mulheres trabalhando no fogão a lenha, as panelas de barro e a comida que todo mundo comia com as mãos. Achei estranho, não quis provar no primeiro momento, mas era guloso e minha mãe fez um prato para mim. Lembro que adorei."
O quitute em questão era o capitão, um bolinho de feijão com farinha e manteiga de garrafa que se modela na hora de comer, misturando os ingredientes com a ponta dos dedos.
"Gostei tanto que, até hoje, coloco o capitão em todos os meus cardápios. Considero minha introdução à comida nordestina. Uso feijão de corda verde e farinha de mandioca bem fininha."
O capitão é só um petisco, uma espécie de tira-gosto que abre caminho para a fartura de receitas típicas que compõem um autêntico arraial paraibano. O milho, rei do cardápio, aparece nos mais variados preparos, sejam doces ou salgados — e isso tem uma explicação.
Os portugueses trouxeram para cá a tradição de comemorar a colheita, que acontece no meio do ano e coincide com o mês dedicado aos três santos. Na capital, o paraibano compra espigas recém-colhidas nas feiras.
A medida padrão, para comprar ou colocar na receita, é a "mão de milho" — o equivalente a 52 unidades, soma de uma dezena para cada dedo, mais duas espigas como agrado ao freguês. No interior é diferente. O milho vem dos quintais para ser compartilhado entre parentes, amigos e compadres.
No capítulo das receitas juninas salgadas, tem milho cozido ou assado na fogueira, além de paçoca de carne-seca com farinha de milho, uma verdadeira iguaria. A galinha de capoeira, nome nordestino para a ave que cresce solta no quintal, doura devagarinho na própria gordura, até gerar um molho grosso, saboroso, perfeito para chuchar o capitão.
Já no universo dos doces, entram em cena diferentes receitas de bolos, o suco cremoso, a pamonha cozida na palha do milho e muita canjica, espécie de pudim de milho verde que, no Sudeste, tem o nome de curau.
Mas não tem canjica doce na Paraíba? Claro que tem, feita com milho branco, para servir quentinha e comer de colher — só que, lá no Nordeste, especialmente nas cidades litorâneas, o quitute se chama munguzá (ou mungunzá, desse jeito também está certo).
Munguzá salgado
Nas capitais, o munguzá é doce, preparado com leite de coco e canela. Já no sertão, nas cidades menores, resiste a cultura de cozinhar o milho salgado com embutidos", conta Onildo.
Essa é a versão que, para o chef, simboliza festa junina, comida de mãe e saudade de casa. Trata-se de um cozidão forte, substancioso, daqueles capazes de matar a fome de uma vez só e deixar mais tempo livre para dançar quadrilha.
Leva milho amarelo seco (que, no Sudeste, é vendido como "milho amarelo para canjica"), carnes de sol e de fumeiro, charque, paio, mocotó, bucho e o que mais tiver à mão. Tempera-se com cebola, louro, tomate, pimenta de cheiro, manteiga de garrafa, cebolinha fresca e coentro, muito coentro.
Onildo enxerga no preparo uma versão nordestina e sertaneja do cassoulet francês. "O princípio é o mesmo: grãos secos que, reidratados, são cozidos com temperos e carnes. A gente come puro e bem quente, com colher, dentro da quenga, tigela feita da casca do coco."
Este ano não foi diferente. Nos primeiros dias de junho, Onildo deixou São Paulo e embarcou para João Pessoa, na companhia de uma penca de amigos paulistanos, para comemorar seu 47º aniversário, no dia 7.
Estavam à sua espera os pais, os irmãos, Vinícius e Lara, e os filhos, Ana Luiza e Lucas, que ainda moram na Paraíba. Festa junina, para ser arretada de verdade, tem que ser assim: muito milho e fogueira acesa, uma boa tigela de munguzá temperado pela mãe, música para dançar quadrilha e toda a parentada ao redor, para deixar o coração quentinho.
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