Topo

O dia em que a América Latina conquistou o auge da gastronomia mundial

Pía León e Virgilio Martinez se beijam ao conquistarem número 1 no 50 Best 2023 com seu restaurante Central - Jorge Gil/Europa Press via Getty Images
Pía León e Virgilio Martinez se beijam ao conquistarem número 1 no 50 Best 2023 com seu restaurante Central Imagem: Jorge Gil/Europa Press via Getty Images

Rafael Tonon

Colaboração para Nossa, de Valencia (Espanha)

21/06/2023 09h29

Há uma passatempo preferido entre os jornalistas que cobrem há muitos anos o 50 Best, a mais influente (e controversa) premiação da gastronomia mundial em duas décadas de existência.

Como a lista é sempre revelada à última hora, a brincadeira é tentar prever o resultado final do restaurante que será eleito o melhor do mundo em cada ano.

As pistas são escassas e desde 2019, a organização da lista deixou as coisas mais complicadas — e emocionantes: uma mudança de regra que prega que, depois que um restaurante ascende ao primeiro lugar, ele se torna inelegível e é removido da lista nos próximos anos.

Isso significa que, a cada ano, o palpite precisa ser renovado. Alguns ouvem outros chefs, fazem bolão com os colegas.

Eu tento sempre ficar de olho no número de pessoas que cada restaurante traz para a cerimônia.

Parece bobo, mas pode indicar muito: o vencedor sobre ao palco no final do anúncio — luzes, papel picado, toda cenografia. Que fica melhor quando há um grupo maior de gente.

Todos os vencedores do 50 Best 2023 - David Holbrook Photograhy - David Holbrook Photograhy
Todos os vencedores do 50 Best 2023
Imagem: David Holbrook Photograhy

Tem sido assim nos últimos anos: basta olhar o restaurante com a maior equipe na viagem. Ainda não falhou uma vez!

O staff do Central chegou aos poucos: a chef e co-proprietária Pía León andava por alguns pré-eventos acompanhada de um assessora e o diretor de projetos. Ninguém ainda tinha visto Virgilio Martinez, seu sócio e marido, a principal cabeça do Central.

Mais tarde, Martinez foi visto com outros dois chefs do bando: uma luz amarela acendeu. Aos poucos, mais e mais "centralers" davam as caras. 1, 2, 3? — contei 8, era um sinal.

'Donos da casa' na expectativa

Nas "apostas" dos jornalistas e alguns chefs, diziam que o DiverXO, de Dabiz Muñoz, também tinha chances. Corriam por fora dois outros espanhóis: Etxebarri (no País Basco) e Disfrutar (Barcelona).

A América Latina representada pelo Peru contra a potência da cozinha de seus colonizadores: me pareceu uma briga boa.

Dabiz Muñoz, chef do DiverXO, no 50 Best - Jorge Gil/Europa Press via Getty Images - Jorge Gil/Europa Press via Getty Images
Dabiz Muñoz, chef do DiverXO, no 50 Best
Imagem: Jorge Gil/Europa Press via Getty Images

Em Valência, era normal que a bola começasse do lado espanhol: os apresentadores da noite não economizaram elogios à cozinha do país — e em especial da comunidade valenciana, os donos da casa que pagaram para o evento estar ali, no impressionante complexo da Cidade das Artes e das Ciências.

Projetado pelo arquiteto local Santiago Calatrava, o complexo parece feito de uma mistura de colunas desenterradas de dinossauros e naves espaciais — tudo branco, cenográfico, imponente.

Janaína Torres Rueda e Jefferson Rueda, chefs do restaurante A Casa do Porco, no 50 Best - Maria Vargas/Divulgação - Maria Vargas/Divulgação
Janaína Torres Rueda e Jefferson Rueda, chefs do restaurante A Casa do Porco, no 50 Best
Imagem: Maria Vargas/Divulgação

Para a premiação, no auditório do Palácio das Artes, um pouco mais de uma centena de degraus tiveram que ser conquistados — culpa da grandiosidade das obras dos arquitetos visionários.

Presságios do sucesso

Os primeiros prêmios da noite já mostravam que poderia ser uma noite latino-americana: logo em 49, o restaurante Rosetta, da chef Elena Reygadas, que também foi eleita melhor chef mulher.

Para entregar o prêmio a ela, uma outra latina, a colombiana Leonor Espinosa, do famoso restaurante LEO, subiu ao palco.

Antes de chamar a colega, entretanto, pediu "quero ouvir a presença da América Latina neste auditório esta noite". "Eeeehs", "uhuuus" e assobios ardidos se seguiram, terminando a cacofonia com palmas.

Pía Salazar, do Nuema, em Quito, foi eleita a melhor chef de confeitaria do mundo  - Divulgação - Divulgação
Pía Salazar, do Nuema, em Quito, foi eleita a melhor chef de confeitaria do mundo
Imagem: Divulgação

Novo prêmio: a melhor chef de confeitaria do mundo é equatoriana. Pía Salazar, do Nuema, em Quito, subiu ao palco emocionada para celebrar a conquista e o reconhecimento das suas sobremesas feitas com cebolas, algas, umami e produtos nativos de seu país.

Era um presságio do que viria a seguir: com até então 11 restaurantes entre os 50, o continente latino-americano já tinha em 2023 um de seus melhores anos na lista internacional dos melhores do mundo.

Faltava anunciar o primeiro lugar: um pouco de suspense, uma pausa irritante para um número de dança com bolhas de água artificiais no telão — da real, nem sequer uma gota — e sabemos que estamos, como esperado, entre Espanha e Peru.

América do Sul no topo

Ânimos aflorados, toda a gente a se remexer nas poltronas de veludo que faziam nossa pele suar ainda mais quando vem o anúncio: o Central é mesmo o melhor restaurante do mundo.

Central, restaurante número 1 do 50 Best 2023 - David Holbrook Photograhy - David Holbrook Photograhy
Central, restaurante número 1 do 50 Best 2023
Imagem: David Holbrook Photograhy

Depois de mais de 20 anos, pela primeira vez na história do prêmio, um restaurante latino-americano chegava ao topo. Com ele, toda uma leva de peruanos, mexicanos, colombianos e brasileiros que se levantaram em festa.

Um sabor de vitória, mas também de uma revanche meio infantil, uma postura um quê irônica de "e achávamos que não conseguiríamos, né?".

Alguns espanhóis não conseguiam esconder certa decepção, mas a maior parte do público presente se levantou, aplaudiu, comemorou. Alguns deram pulinhos em círculo em volta dos chefs, outros dançaram com as mãos em ondas como se tocasse salsa.

É só um prêmio, claro, visto como controverso por muitos, principalmente pela forma que os restaurantes ascendem às melhores posições. Nem tudo é festa!

Mas na noite de ontem, a América Latina era só celebração: um continente de peito cheio, espinha ereta e orgulhoso de que a comida que faz, que cozinha, que volta (aos poucos) a valorizar. E que o mundo da gastronomia já não pode mais ignorar.