Pirataria e turismo: afinal, é permitido visitar o Titanic?
Após um 'submarino' — na verdade, um submersível, já que a embarcação é dependente de um navio para orientar a viagem — desaparecer no oceano nesta segunda (19) em uma expedição para visitar o Titanic, as buscas pelos passageiros e tripulantes mobilizam o mundo todo e levantam dúvidas. Afinal, um grupo de turistas poderia tentar se aproximar do malfadado transatlântico?
A resposta mais simples para esta pergunta é: depende. Isto porque, tanto quanto a história que resultou no seu naufrágio em abril de 1912, o Titanic seguiu nas últimas décadas envolto em polêmicas e disputas judiciais mesmo a 3.800 metros no fundo do Atlântico Norte.
Desde que foi localizado em 1985, o navio foi estudado por cientistas e curiosos, como é o caso do diretor James Cameron que mergulhou 33 vezes até os destroços durante sua pesquisa para o filme "Titanic" (1997) com Leonardo DiCaprio e Kate Winslet.
Caçadores de tesouros também se aventuraram na região desde então, em busca de pilhar e revender os valiosos pertences de passageiros, além de partes do navio, enquanto turistas buscavam ver de perto um pedaço da História.
Brigas e ganância por trás do navio mais famoso do mundo
Em 1998, contudo, um juiz federal dos EUA tentou impedir as expedições turísticas organizadas na época pela Deep Sea Expeditions ao julgar que a empresa americana RMS Titanic Inc. detinha direitos exclusivos a escavar, fotografar e visualizar o navio pois "preservava os artefatos recuperados do naufrágio para benefício de toda a humanidade", reportou à época o jornal Tampa Bay Times.
A decisão rendeu protestos, já que o navio está em águas internacionais — a cerca de 685 km da costa canadense ou a 1.667 km da americana — e foi originalmente fabricado no Reino Unido. Meses depois, a discussão foi parar na Suprema Corte dos EUA, que reverteu o veredito anterior e permitiu as fotos e os passeios turísticos no Titanic.
Cinco anos depois, os destroços estavam, todavia, exibindo as consequências não só da contínua e esperada deterioração no fundo do oceano, como das visitas modernas. Em 2003, o jornal The New York Times denunciou o impacto dos encontros do transatlântico com curiosos — como um casal que se casou em um submarino em miniatura sobre a sua proa — que estavam acelerando o "sumiço" de partes da embarcação.
De acordo com os relatos de mergulhadores, entre o final dos anos 90 e o início dos anos 2000 (logo após o lançamento do filme), uma das torres de observação — de onde foi visualizado o iceberg — teria desaparecido. Um mastro teria se amassado e a cabine do capitão havia desabado. Buracos podiam ser vistos nos deques, enquanto paredes metálicas cederam.
Na ocasião, Paul Henry Nargeolet — o capitão do submersível desaparecido nesta segunda (19) — e um expert nos mergulhos ao Titanic, contou que a cada novo encontro com o navio, observava novos danos. "As coisas estão indo cada vez mais rápido", comentou. Entre suas visitas — até 2003, ele já tinha estado no local mais de 30 vezes, — o teto caiu e um grande buraco se abriu no deque dos barcos, de onde escaparam alguns dos sobreviventes.
Ele também revelou que, em 2002, piratas enviaram um robô dentro dos destroços sem permissão legal da empresa que detém o direito de exploração do Titanic. "Eles estavam tentando recuperar alguns artefatos. Mergulharam na seção da proa e tentaram recuperar o pedestal da roda do leme, a única coisa que sobrou no meio da ponte de comando. Ouvi que as pessoas viram muitos danos".
Em 2006, o documentarista e produtor da BBC britânica Ian Cundall denunciou à emissora americana ABC que os piratas continuavam a retirar todo o tipo de item — até mesmo objetos que não seriam, à primeira vista, valiosos — do Titanic. "Uma cadeira do deque é vendida por 100 mil libras, uma cópia do menu do último jantar vale US$ 500 mil. Os preços são fantásticos."
Em resposta, a última sobrevivente britânica do naufrágio viva à época — Millvina Dean, então com 94 anos —, condenou o mercado de contrabando de relíquias.
Meu pai ainda está lá. É terrivelmente errado tirar coisas especialmente de um navio onde tantas pessoas morreram. Eu não acredito que essas pessoas pensaram nisso. Eles só pensaram no dinheiro."
Uma nova fase para o Titanic?
Diante dos saques e do turismo predatório, EUA, Reino Unido, França e Canadá passaram a discutir nos anos 2000 um potencial acordo para regulamentar de maneira ampla a exploração da área do naufrágio. De acordo com a NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration, órgão do governo federal americano que regula atividades científicas nas águas do país), haviam sido realizados até o momento apenas acordos pontuais.
Entre eles, por exemplo, está uma parceria realizada entre a Titanic Ventures Limited Partnership com o L'Institut Français de Recherche pour L'Exploitation de la Mer em 1987 que resultou com o apoio da Marinha dos EUA na expedição que descobriu os destroços do Titanic em 1985. Em 1987, os franceses repetiram uma expedição que recuperou 1.800 artefatos históricos, levados à França para conservação e curadoria.
No entanto, de 2003 a 2019, foram negociados termos para um tratado finalmente assinado entre EUA e Reino Unido meses antes do início da pandemia. No texto do "Agreement Concerning the Shipwrecked Vessel RMS Titanic" ('Acordo a Respeito da Naufragada Embarcação RMS Titanic', em tradução livre) foram basicamente reforçadas as regulamentações da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) que já protegiam o navio.
Além disso, foram detalhados termos para as visitas aos destroços: elas devem ser realizadas apenas mediante licença emitida pelos países para navegar na área e foi proibida a exploração comercial e o distúrbio a restos mortais de vítimas do naufrágio. Considerado ainda um sítio arqueológico e um memorial de seus mais de 1.500 mortos, seus artefatos podem ser estudados usando técnicas "não intrusivas" e "não destrutivas", priorizando a retirada de amostras em vez de relíquias ou a realização de escavações.
E o turismo?
Mesmo diante do novo tratado, visitas turísticas ao navio estão em uma "área cinzenta". Elas não são tecnicamente proibidas, mas devem respeitar seus termos de compromisso com a preservação do local — ou seja, não vale levar um souvenir do navio. Não à toa, muitas destas expedições envolvem um itinerário de viés educacional, que tornaria mais simples e até dispensaria a sua autorização.
"Uma revisão do acordo internacional sobre o Titanic assim como a Convenção de Heranças Culturais Submersas de 2001 da Unesco, revela que visitas não intrusivas não exigem permissão ou autorização. O escopo de proibição contra exploração comercial de patrimônio cultural subaquático é para prevenir recuperação [de artefatos] não autorizada e pilhagem, não inclui visitas não intrusivas, não importa se são lucrativas ou não", explicou Ole Varmer, conselheiro legal aposentado da NOAA ao site especializado TripSavvy.
O tratado também só é válido entre as partes que o assinaram. "Apesar de só valer para o Reino Unido e os EUA, ele vai longe para restringir o acesso não regulado por afetar muitos daqueles que são levados e equipados para conduzir uma expedição deste tipo", salientou em 2020 Juliet Eales, porta-voz do Departamento de Transporte do Reino Unido, à revista Time.
De fato, apesar de não coibir que canadenses e franceses — que ainda não sancionaram o acordo — ou até outras nacionalidades explorem o local de maneira indevida, o tratado tem peso já que nos EUA estão sediadas boa parte das empresas que realizam este tipo de viagem, como é o caso da OceanGate Expeditions que enviou o submersível desaparecido ao fundo do Atlântico.
Ainda segundo o TripSavvy, a OceanGate trabalha junto à NOAA, agência do governo responsável por implementar os termos do tratado em águas americanas e garantir que todos os protocolos sejam seguidos. Portanto, o submersível poderia estar no local, seguindo padrões de segurança e normas técnicas e científicas para a expedição.
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