Curau, canjica e mungunzá: nomes de pratos juninos se embaralham pelo país
Num país tão grande e variado quanto o Brasil, é óbvio que as diferenças vão muito além dos ritmos e tradições seguidas nas festas juninas que acontecem de Norte a Sul. As variações linguísticas também chegam à mesa e provocam até certa confusão entre pratos tradicionais.
Quer ver só? Experimente sair de São Paulo e pedir canjica num festejo maranhense. Em vez da esperada sobremesa de aspecto ensopado, com grãos de milho cozidos em molho branco, será servido um creme amarelo, à base de milho verde ralado, conhecido no Sudeste como curau. No estado em que o bumba meu boi é estrela junina, o nome adotado para a iguaria é mungunzá.
Nas regiões Norte e Nordeste, a canjica é preparada com milho verde fresco amarelo e ralado, assim como o curau do Sul, Sudeste e Centro-Oeste. A diferença é que a receita da parte de cima do país conta com milho, açúcar, leite e canela ou, então, leite condensado substituindo parte do leite e do açúcar, bem como um pouco de sal.
"Já o curau é feito com o milho verde ralado e, em sua receita mais original, esse milho ralado é peneirado e cozido apenas com açúcar até engrossar, finalizado com canela depois de esfriar", explica Pedro Drudi, professor de Gastronomia da Anhembi Morumbi.
Outro detalhe é que a canjica nordestina/nortista possui adaptações de acordo com a identidade cultural de cada região. Na Bahia, devido à influência muito forte da cozinha africana, usa-se o leite de coco na preparação da receita.
Enquanto isso, em Pernambuco, com sua herança cultural europeia, sobretudo após a invasão dos holandeses, é costume adicionar especiarias como a canela para aromatizar a preparação, e no Rio Grande do Norte, é adotada a manteiga de garrafa na receita.
Não é só nas festas juninas
Se, do Centro-Oeste para baixo, a canjica é mais popular nos meses de junho e julho, graças aos festejos típicos, o mesmo prato (chamado mungunzá pelos nortistas e nordestinos) é consumido o ano todo na outra ponta do mapa.
Em qualquer lugar, a base costuma ser o milho branco, seco e levemente triturado, cozido no leite ou leite de coco com mais açúcar.
"O que costuma variar são os complementos, como coco ralado, paçoca, amendoim, canela em rama ou em pó", diz Roseli Candeo, instrutora dos cursos de gastronomia do Senac EAD.
No Sul, ainda costuma-se adotar o leite condensado, para adoçar e agregar cremosidade, algo incomum nas regiões opostas do país.
Por conta da sazonalidade dos grãos, é possível encontrar o mungunzá sendo servido com milho amarelo. "Uma coisa é certa: no preparo deste prato, o milho sempre será o grão seco; nunca o fresco", pontua Pedro Drudi.
Tem também a versão salgada
Para aumentar o nível de confusão, o mungunzá pode ser doce ou salgado e tem diferenças de origem. A versão com sal, feita com milho amarelo, era comida dos negros escravizados nas lavouras de cana-de-açúcar.
"Neste prato são utilizados ingredientes semelhantes aos da feijoada. Além da carne de porco, é possível encontrar receitas com frango desfiado ou linguiça", complementa Spindola Alcântara", observa Spindola Alcântara, mestre em Ciências Gastronômicas; especialista em Gastronomia, História da Gastronomia e Cultura e professor de Gastronomia da FAEP.
Essa também é a receita junina compartilhada pelo chef paraibano Onildo Rocha em Receita de Família, aqui em Nossa:
No recorte histórico, o mungunzá doce, com milho branco, integrava o cardápio dos brancos escravocratas, uma vez que o leite era restrito às mesas nobres.
"Mas o doce também era preparado pelos negros, com leite de coco, amendoim e açúcar, e outro objetivo: o prato era servido como homenagem a Oxalá, nas primeiras sextas-feiras do mês. Este tipo de receita ainda é a mais difundida até hoje e se tornou a referência para o mungunzá", diz Pedro Drudi.
Por que nomes são diferentes
O milho é herança agrícola indígena, explorado bastante pelos tupinambás, que viviam no litoral brasileiro e foram os primeiros nativos a terem contato com os portugueses. Com a chegada dos europeus e, posteriormente, dos negros escravizados, a origem do termo canjica seguem controversa.
Há quem credite aos negros escravizados, já que "kanzika" era o nome de uma papa cozida feita de grãos em quicongo, língua dos povos do Congo e de Angola. "Também existem referências parecidas em outras línguas africanas, como a 'kandjica' do quimbundo", diz Pedro, da Anhembi Morumbi.
Outra versão aponta que os indígenas que falavam a língua tupi e viviam no litoral do Nordeste brasileiro adotavam o termo "cangaíba" para se referir ao tipo de milho adotado no preparo da canjica.
Curau, por sua vez, pode ter origem na palavra 'kora', cujo significado atribuído é 'pasta' ou 'pastinha', semelhante à consistência do curau. Ainda é considerada a hipótese de vir das papas portuguesas (parecidas com o cozido), feitas tanto salgadas quanto doces. Por fim, 'mungunzá' é originário da palavra 'mu'kunza', que também vem do quimbundo e significa milho cozido.
Segundo Spindola, as mudanças de terminologias podem ter ocorrido no decorrer do tempo e em diferentes comunidades. Para ele, é importante ressaltar que o uso dos termos pode variar mesmo dentro de um estado ou até cidade.
"A terminologia culinária pode ser afetada por fatores como tradições familiares, influências culturais específicas e adaptações regionais ao longo do tempo", argumenta.
Para embaralhar ainda mais
Se já não bastasse tanta confusão de nomes, as tretas linguísticas podem ir além, como lembra Pedro Drudi. "Em Minas Gerais, o mungunzá também é conhecido como piruruca ou canjica grossa. Em alguns lugares do Centro-Oeste, o prato é chamado de chá-de-burro", cita.
O curau ganha o nome de jimbelê em algumas regiões e, ainda, canjiquinha. Só que canjiquinha, em várias partes do país, é um prato feito com grão de milho seco e quebrado.
Para as suas receitas juninas
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