Com carne-seca na brasa e espetinho, comida africana tem alma churrasqueira
Quando o assunto é comida de origem africana, não dá para evitar: a gente logo pensa em acarajé, abará, vatapá e xinxim de galinha, quatro receitas onde o camarão é protagonista ou, no mínimo, coadjuvante de luxo. Carnes e miúdos, no entanto, sejam de bovinos, suínos, ovinos ou caprinos, também são uma parte fundamental do repertório trazido da África.
"Povos do Quênia e da Tanzânia eram basicamente pastores nômades, enquanto na África Ocidental, em países como Nigéria e Benim, a pecuária é predominante", afirma Patty Durães, pesquisadora de culturas alimentares com foco na ancestralidade afrodiaspórica.
Esse lado pouco conhecido do receituário africano, onde a presença de carnes é marcante, vai estar sob os holofotes na Churrascada 2023, festival que acontece no dia 5 de agosto, em São Paulo.
As 3 mil pessoas que pagaram até R$ 600 pelos ingressos, esgotados em pouco mais de 1 hora, vão conhecer profissionais como o chef e artista plástico Dela Kwami Acolatse, que vem de Gana para mostrar a comida de rua de seu país. Ele vai preparar beef chichinga, uma espécie de espeto de carne grelhado, besuntado com um mix de temperos chamado suya, à base de castanhas, especiarias e pimentas.
Em Gana, carnes vermelhas, inclusive de cabritos e porcos, são bastante consumidas, embora nem todos comam carne suína por razões religiosas. Galinha também é uma das favoritas, por ser mais acessível."
Nem todo prato ganês faria sucesso no Brasil. Acolatse conta que, em parte do norte do país, carne de cachorro é considerada iguaria. E tem gente, por lá, que se regala com ratos do mato. Em compensação, os métodos de preparação mais usados em Gana são bastante conhecidos por aqui.
"Fazemos muitas frituras, cozidos, assados e grelhados", enumera. A fermentação é estrela na cozinha ganesa e aparece em muitos pratos triviais do dia a dia, como o kokonte, caldo à base de farinha de mandioca fermentada, e o banku, bolinho de milho fermentado. "Originalmente, a fermentação servia como método para preservar os alimentos e enriquecer o sabor da comida. Hoje, continua sendo muito usada", diz o chef ganês.
Quem também vem a São Paulo é o chef Ikenna Bobmanuel, nascido na Nigéria, que vai preparar um sanduíche inusitado: costela defumada dentro do acarajé. Ele mesmo, o bolinho de feijão fradinho que virou símbolo da cozinha baiana.
"O acarajé tem origem no oeste africano. Na Nigéria, o nome é akara, enquanto os ganeses o chamam de koose. Os ingredientes e a técnica são praticamente os mesmos. A diferença é que, no Brasil, o bolinho é frito é azeite de dendê e, na Nigéria, em óleo de amendoim."
O tempero da costela também é novidade para o brasileiro. Ikenna usa uma espécie de frutinha, parecida com a avelã, chamada country onion. "É um tempero da África Ocidental, usado em sopas e molhos tradicionais. Tem um sabor umami pronunciado, realmente muito bom para churrasco."
Ancestralidade revelada
Por que será que receitas como essas soam tão diferentonas em um país que tem o povo africano como um de seus pilares?
Para a cozinheira baiana Solange Borges, que herdou a profissão da mãe e organiza vivências gastronômicas em Camaçari (BA), a carne, sobretudo a bovina, sempre foi um alimento inacessível para boa parte da população negra.
A gente pescava, tinha criações de galinhas e porcos. A carne de boi, quando chegava, era uma parte da costela ou o charque, feito com ponta de agulha."
Além de barata, a carne-seca era fácil de armazenar. Pendurada sobre o fogão a lenha, ia defumando aos poucos e durava bastante, uma lembrança boa que Solange vai reviver na Churrascada. Em sua estação, ela vai preparar carne de charque assada na brasa — um preparo pouco comum no Sudeste — acompanhada de farofa d'água e molho de dendê.
"Depois de dessalgar o charque de um dia para o outro, dou uma fervura na panela de pressão, para ficar macia, e levo a peça inteira para a brasa. Fica maravilhosa."
Carnes também são Comida de Santo, os pratos oferecidos aos orixás nas religiões de matriz africana. Chef do Meza Bar e do Yayá Comidaria, no Rio de Janeiro, Andressa Cabral vai montar sua estação da Churrascada como um altar ritualístico, em homenagem a Exu, Ogum e Oxóssi, para contar essa história.
E pretende causar — vai marinar um porco inteiro em molho aveludado de fígado, por 48 horas, para depois assá-lo no rolete, sobre as brasas. Nas palavras dela, será um molho de acento asiático, com uma bomba de especiarias. De acompanhamento, paçoca de amendoim e dendê.
O conceito 'from nose to tale', tão na moda, sempre foi um elemento básico dentro da cultura africana. Houve um momento em que meu povo só teve acesso às sobras e redesenhou seu consumo. Nos sentimos responsáveis pelo animal."
Andressa não estranha o fato de a cozinha afro ser tão associada ao camarão — ele é mesmo onipresente no receituário que, hoje, virou sinônimo de Bahia. "A gente tem tranquilidade para misturar camarão seco com várias outras proteínas. É nosso refogadinho básico, com cebola, alho e cheiro verde."
Mas ninguém acharia essas combinações estranhas se a história da cultura africana nos tivesse sido contada de outra forma.
"Nosso conhecimento é muito limitado em todos os assuntos: artes, literatura, tecnologia...", diz a pesquisadora Patty Durães, que assina a curadoria da Churrascada. Para ela, só conhecemos a versão contada pelos colonizadores europeus.
O mundo toma cerveja e bebe vinho porque os povos africanos descobriram técnicas de fermentação, mas suas descobertas foram apropriadas em um processo feroz de apagamento."
Nunca é tarde para virar a página e começar de novo, do jeito certo.
Itens para churrasco
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