Deu vontade de bebida japonesa? Esqueça o saquê: agora é a vez do shochu
É comum alguns clientes chegarem ao The Punch Bar, em São Paulo, sedentos por um coquetel com saquê. Por ser um lugar de pegada nipônica, que reproduz o clima dos pequenos bares de coquetelaria do Japão, a associação ao fermentado de arroz parece inevitável.
"Muita gente que faz esse pedido tem na cabeça algo parecido com a caipirinha. Pergunto o que a pessoa espera de um coquetel com saquê e, quando sinto que há abertura, sugiro uma receita com shochu", conta Ricardo Miyazaki, proprietário e bartender do The Punch.
"Ah, já sei! Aquela bebida coreana", também é comum o cliente dizer. Só que não. O destilado coreano chama-se soju. Embora haja algumas similaridades entre os dois estilos, não confunda: soju é uma coisa e shochu é outra.
O processo de elaboração do soju coreano permite que sejam feitas várias destilações — ou destilação em coluna, técnica que barateia os custos de produção, mas, de maneira geral, origina bebidas menos ricas sensorialmente.
O shochu japonês, bebida bastante delicada, tem regras estritas. A destilação deve ser única e acontecer em alambiques de cobre. Não são permitidas "maquiagens" no produto final, como adoçar a bebida, usar acidificantes ou acrescentar água para balancear o teor alcoólico, o que acontece na produção de soju.
Diversidade sensorial: muitas bebidas numa só
Outro equívoco é imaginar que shochu é feito apenas de arroz — uma espécie de saquê com pós-graduação, que, depois do processo de fermentação, seria destilado.
Além do arroz, mais de 50 ingredientes são permitidos na fabricação de shochu. Batata-doce, gergelim, cevada, trigo sarraceno, castanha, açúcar mascavo, cana-de-açúcar, ervilha, chá, cenoura, feijão azuki são algumas das matérias-primas. A borra de arroz que sobra da produção de saquê também pode ser refermentada e destilada para originar shochu.
Shochu é a mais diversa categoria de destilado. Carrega consigo os aromas e o sabor da matéria-prima com que foi produzido. Levando-se em conta que é feito em todo o Japão, com ingredientes diferentes, temos uma infinidade de perfis sensorias", diz Roberto Maxwell, especialista em saquê e shochu.
Para complicar um pouco mais a vida de quem quer desvendar os mistérios do shochu, há outro elemento fundamental em sua produção. Koji é o microorganismo que transforma o amido da matéria-prima em açúcar, para que as leveduras o transformem em álcool na etapa da fermentação. Há três tipos de koji: o branco, o amarelo e o preto.
Cada tipo de koji imprime características distintas à bebida. O branco tem função mais neutra. O amarelo traz notas frutadas e florais. O preto, mais potente, faz com que o shochu ganhe caráter encorpado, com notas terrosas no nariz e no paladar.
Como complexidade pouca é bobagem, há um tipo específico de shochu, o awamori, cuja elaboração só é permitida na ilha de Okinawa. Diferentão e exclusivo, o awamori só pode ser feito com arroz tailandês e com koji preto.
Bebendo shochu como os japoneses
Para quem é da leveza ou surfa na tendência das bebidas com menor teor alcoólico, uma boa notícia: shochu não é das bebidas mais bravas em graduação, que varia entre 25% e 35% (podendo chegar a mais, no caso do awamori).
Os jeitos de se consumir shochu no Japão, diluído em água e outros líquidos, contribuem para que esse teor baixar ainda mais:
- Mizu-wari: é o shochu mesclado a água gelada, que amacia a pegada alcoólica do destilado, mas mantém vivas suas notas de aroma e sabor.
- Oyu-wari: com água quente, é um serviço popular durante o inverno.
- Soda-wari: shochu diluído com água carbonatada e gelo, boa pedida para o verão.
- Ocha-wari: oolong, chá verde e chá de cevada são infusões bastante populares para a mescla com shochu no Japão.
Há quem prefira o shochu puro, em temperatura ambiente ou refrigerado. Mas o grande hit no país do sol nascente é o chuhai, mistura de shochu com água carbonatada, algum xarope e sumos de frutas.
Vendido em latas, o chuhai pode ser encontrado em máquinas automáticas, supermercados ou quiosques no Japão. Há para todos os gostos: limão, abacaxi, laranja, kiwi, yuzu, uvas, pêssego e mais uma montão de sabores.
Aventuras na coquetelaria
Misturar shochu a outros elementos — ou seja, criar coquetéis — tem sido a porta de entrada para o destilado no mundo ocidental. Para promover maior conhecimento sobre o produto, a JSS, associação japonesa dos fabricantes de saquê e shochu, investe em um programa educativo, The Shochu Academy, que envolve especialistas em bebidas, sommeliers, empresários da área de gastromia, jornalistas e, principalmente, bartenders.
Trabalhar com shochu no bar não é algo tão simples, como explica quem estuda a bebida e sua interação nos coquetéis. "É preciso saber usar, para não mascarar o sabor dominante da matéria-prima empregada na elaboração de cada shochu", diz Ricardo Miyazaki.
"Testei algumas receitas que não deram certo, pois as características do shochu desapareciam no coquetel", conta Ana Gumieri, chefe de bar do Gran Bar Bernacca, em São Paulo, e aluna da primeira edição de The Shochu Academy no Brasil.
O grande desafio, segundo Ana e Ricardo, é entender a natureza delicada do destilado japonês. Jerez, vermutes e alguns tipos de licor, quando empregados em equilíbrio, são parceiros que mantêm vivo o perfil do shochu ou do awamori.
Seguindo essa linha de raciocínio, Ana criou, para a carta do Bernacca, o Koji Dirty, com awamori, licor de cereja, bitter de katsuoboshi (conserva seca de atum) e algodão salgado. "O resultado salino faz a boca salivar", diz a bartender.
Na carta do The Punch, Ricardo usa Lillet (que traz dulçor) e Cocchi Americano (responsável pelo toque de amargor), em doses comedidas, para enaltecer o sabor do awamori no coquetel Mensoore. Outra de suas invenções é o Sunset Beach, com awamori, abacaxi, limão e licor de amêndoas.
Koya88, do bartender Thiago Pereira e do chef Thiago Maeda, é outra casa que se rendeu os encantos do shochu. Ele aparece num dos coquetéis mais pedidos, o refrescante Pineapple Chuhai, em que o shochu é infusionado com tomilho e misturado a damasco e soda de abacaxi com matchá e flor de sal.
Provando a boa amizade entre shochu e Jerez, o Koya também oferecem o Ronin, alquimia de awamori, Jerez Fino, licor de ameixa Umeshu e bitter de cacau.
O chuai também faz fama em mais uma casa de gastronomia nipônica, Kotori, com a receita Meron Chuhai, mix de shochu, melão e soda. Na carta de outro endereço do chef Thiago Bañares, o Tan Tan Bar, a novidade é o Chaganju, com awamori, espumante de carambola, manga e priprioca.
Kevin Cavalcante, chefe de bar do restaurante Imakay e aluno da The Shochu Academy, tem feito experiências com destilados japoneses em releituras de coquetéis clássicos. Caso do Umami Negroni, com awamori, Campari infusionado com alga kombu, vermute seco e bitter umami.
Outro drinque de Kevin que traz a presença do quinto sabor é Hiiro, com awamori, vermute infusionado com shitake, licor maraschino, tintura de pimenta togarashi, bitter umami e Angostura.
Um pouco de história
A ilha de Okinawa, então reino de Ryukyu no século 15, deu a régua e o compasso para a produção de shochu ao longo da história japonesa. A técnica de destilação, acreditam historiadores, teria chegado ali vinda da China ou do Sião (atual Tailândia).
Em 1546, o comerciante português Jorge Alvarez cita em seus relatos de viajante o hábito de se beber um destilado de arroz na região de Yamagawa (hoje a cidade de Ibusuki). O registro mais antigo da palavra "shochu" aparece no relato doméstico de um cidadão que reclama do patrão: "Era tão muquirana que nunca nos ofereceu shochu".
Nos anos 1970 houve um boom de popularidade do shochu no Japão, seguida de outra onda de consumo na virada do século. Foi quando destilados feitos de outros ingredientes, além dos tradicionais arroz e cevada, ganharam força no mercado. O shochu de batata-doce, ainda não disponível no Brasil, tornou-se bastante popular.
O que provar
A sommelière Yasmin Yonashiro indica alguns rótulos de shochu e awamori disponíveis no Brasil:
- Iichiko Silhouette - shochu de cevada da região de Oita, com sabor refrescante, aromas cítricos e herbais. 25% de álcool.
- Ginza No Suzume Kuorokoji - shochu de cevada e koji preto, que dá mais corpo ao destilado, sem fazer com que perca suavidade. 25% de álcool.
- Kome Hakutake Shiro - shochu de arroz da região de Kumamoto, tem notas de pera e baunilha no paladar. 25% de álcool.
- Tenshou - da região de Okinawa, produzido com trigo sarraceno e cevada, é um shochu clássico, de paladar suave. 25% de álcool.
- Mizuho Gold - awamori de Okinawa, à base de arroz, envelhecido por três anos. Traz dulçor e notas de baunilha. 30% de álcool.
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