Sexo grupal e cerveja à vontade: como era o Festival da Embriaguez no Egito
Imagine uma festa das boas em que a cerveja é liberada e parece não acabar. Lá pelas tantas, quando o povo já está tralalá, o anfitrião sugere que todo mundo pegue todo mundo como se não houvesse amanhã. Isso em português tem nome, mas não fica fino dizer assim, logo no começo do texto.
Não estamos falando de uma balada eletrônica em cidades avançadinhas e permissivas como Berlim ou Amsterdã. Mas do Egito Antigo, norte da África. Antigo de verdade (talvez coisa de 3000 anos antes de Cristo), onde acontecia o Festival da Embriaguez, em homenagem à deusa Hathor, regado a cerveja e a sexo grupal, no melhor estilo "ninguém é de ninguém".
Era normal naquelas bandas. Hathor (ou Sekhmet), deusa da pá virada, se não fosse agradada, podia transformar a vida de todo mundo num inferno, impedindo a boa inundação anual do Rio Nilo. A subida das águas era fundamental para fertilizar a terra, manter a vida e a fartura. Acreditava-se que Hathor tinha poder de decisão sobre esse fenômeno natural.
A história que se conta é a seguinte: o grande deus Rá, desconfiado de que os humanos tramavam tomar seu lugar, decidiu exterminar a raça toda. Sua filha Hathor (que tinha mais de uma cara, mais de um nome e mais de um temperamento) foi escolhida para a missão. Tomando a forma de Sekhmet, corpo de mulher e cabeça de leoa, foi com sede ao pote.
Rá voltou atrás. Talvez não fosse bom negócio destruir a humanidade. Afinal, quem sobraria para adorá-lo? Sekhmet não queria largar o osso, continuava mandando brasa, achando deliciosa a brincadeira de devorar quem visse pela frente. Rá, espertamente, mandou tingir 7 mil jarros de cerveja com um corante vermelho e inundou um pedaço de terra com a bebida.
Sekhmet achou que a cerveja era sangue. Baixou lá, bebeu, bebeu, ficou molinha, doidona. Sossegou o facho, deixou a ideia de matança de lado e voltou para a casa do pai virada em Hathor, uma bela mulher (ela era bem complicada, também podia assumir a forma bovina).
Os egípcios daquele tempo relacionavam Hathor à música, à dança, à alegria, à embriaguez — a tudo o que é gostoso. E também à fertilidade (guarde essa informação). Natural que precisassem mimar uma divindade que, se contrariada, virava na leoa e acabava com a graça no planeta. Sekhmet, sua outra face, era reconhecida como deusa da guerra e da destruição.
Micareta à egípcia
A festa acontecia no vigésimo dia do mês de akhet, que corresponde ao nosso agosto. No fim da tarde, vinda pelo rio, a imagem da deusa era levada ao templo por sacerdotes, que a colocavam num lugar onde todos a pudessem ver. Eram feitas oferendas a Hathor — cerveja, vinho e água, aludindo à necessidade de uma boa enchente.
Todos vestiam suas melhores roupas e joias, lambrecavam-se com óleos cheirosos, cantavam e dançavam durante a chegada da deusa, no templo decorado com flores. Bolas de barro, representando os olhos dos inimigos de Hathor, eram destruídas por gente importante, incluindo o faraó, se estivesse presente. Depois da cerimônia inicial, tudo era liberado.
Todos podiam beber cerveja e vinho à vontade e, antes de despencarem de porre, transar com quem quisessem.
Mark Forsyth, autor de "Uma Breve História da Bebedeira" (Companhia das Letras), conta que um sacerdote dava a largada para a balbúrdia:
Sim, vamos beber e comer do banquete! Vamos nos regozijar, regozijar e regozijar de novo! Que Bastet (outro nome de Hathor) esteja a nossos pés. Vamos nos embriagar por ela em seu festival da embriaguez. Deixe-o beber, deixe-o comer, deixe-o foder."
Ver a deusa no meio de um transe alcoólico, eles acreditavam, permitia uma conexão mais rápida com o sagrado, uma vez que Hathor/Sekhmet também era bem chegada a uma manguaça. A ocasião ideal para, além de uma boa inundação, fazer pedidos pessoais à divindade.
Claro que não prestava. A vomitona geral era um dos resultados mais imediatos da orgia, que terminava em ronco pesado. Antes do amanhecer, a estátua de Hathor era levada ao saguão central por pessoas que tinham a nobre missão de manterem-se sóbrias, servir e ajudar os mais trôpegos. O som de tambores acordava os dorminhocos (imagine a zoeira) e essa era a hora boa parar bater um plá com a deusa e pedir-lhe favores.
Nove meses mais tarde, como era de se supor, nasciam crianças fabricadas durante o festival, sem que isso fosse motivo de vexame.
Kenherkhepeshef, sacerdote e herdeiro de boa parte da fortuna de sua mãe, gabava-se de ter sido concebido no dia da celebração a Hathor, como contam inscrições gravadas no monumento que mandou construir em sua própria homenagem. Era chique (ter nascido sob as bênçãos de Hathor e erguer templos a si próprio).
Orgia documentada em versos
Hoje ainda se discute o papel do ato sexual nessas festividades. Rolava mesmo ou tudo é fruto da imaginação de um egiptólogo lascivo? A arqueóloga Betsy Bryan, da Universidade Johns Hopkins de Baltimore, trabalhou em escavações no templo de Mut, em Luxor (antiga Tebas) e garante haver indícios suficientes para acreditarmos na orgia.
Nessas festas, o sexo tinha o sentido de fertilidade e renovação, e de fazer com que a enchente do Nilo voltasse a acontecer, para também levar fertilidade à terra. Há canções cujas letras estão inscritas em vasos que parecem ter sido usados nesses rituais: 'Deixe que bebam e tenham sexo em frente à deusa'", disse Betsy ao jornal "Los Angeles Times".
Outra evidência, segundo a arqueóloga, é um texto de 900 antes de Cristo, escrito em primeira pessoa feminina: "Lembro-me de visitar os ancestrais e de quando fui, ungida com perfume como amante da embriaguez, viajar pelos pântanos".
"Viajar pelos pântanos" (ou "ir aos charcos") era gíria egípcia para chegar aos finalmentes (similar ao nosso "atrás da moita"), aponta a especialista, que relata a participação de gente de vários estratos da sociedade nas noites em que se brindava a Hathor. Gente pobre, gente rica, que nem Carnaval.
Betsy descreve que o festerê não rolava apenas nos templos, mas em casas ou ao ar livre — que nem festa junina, que pode acontecer no grande arraial de Caruaru, na igreja ou na escola.
Também encontrou evidências de que nem todos os bebês nascidos da festa tinham a mesma sorte de Kenherkhepeshef. Há registros, nos períodos Ptolomeico e Romano (330 aC a 27 aC), de crianças órfãs oferecidas ao templo.
Cerveja para o povo, poder e ordem social
A egiptóloga Victoria Jensen, da Universidade da Califórnia em Berkeley, sugere que as cerimônias de adoração a Hathor (ou de divindades que a antecederam na mitologia do Egito) sejam ainda mais antigas que as primeiras evidências físicas das festas encontradas por arqueólogos, datadas do Império Médio (2050 a.C a 1710 a.C).
As festas, segundo ela, têm origem no período pré-dinástico de Nagada 2° (entre 3500 e 3000 aC). A crescente desertificação do Saara "comia" a savana e fazia com que o povo se espremesse nas margens férteis do Nilo. "Este cenário ajudou a impulsionar a centralização política e a guerra, a maneira como eles lutavam pelo controle da terra arável", escreveu Victoria em um artigo acadêmico.
O período coincide com a presença de cervejarias de escala industrial em vários pontos do Egito, algumas com capacidade para produzir cerca de 760 litros por dia (haja festival). Numa sociedade bastante desigual, antes mesmo do capitalismo, o poder do rei e dos donos dos meios de produção era legitimado pelos festivais do goró.
O Festival da Embriaguez era financiado pelo faraó (tido como a personificação de Rá na terra) e pelos senhores que controlavam as cervejarias, com apoio do poder religioso. Era possível que, naqueles idos, um cidadão comum pensasse: "Que sujeitos batutas! Liberam um baita open bar de cerveja na faixa e ainda deixam a galera fofar numa boa".
O antropólogo Michael Dietler, da Universidade de Chicago, citado por Victoria, acredita que as práticas culturais envolvendo o álcool constroem, personificam e moldam tanto a identidade pessoal quanto coletiva. As festas transformam o capital econômico em capital simbólico. Fica todo mundo satisfeito: quem bebe e quem oferece a bebida.
As pessoas são reunidas em comunidade, mas as festas também têm o poder de, simbolicamente, reiterar e legitimar relações institucionalizadas de um poder social assimétrico", diz Michael.
Pão (no caso, cerveja) e circo davam ao povo a sensação de pertencimento e ajudavam a manter a ordem social que os poderosos queriam ver estabelecida. Portanto, desconfie de quem lhe ofereça muita cerveja. Mesmo que os benefícios lúbricos advindos do convite possam parecer irresistíveis.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.