O pai tá on: é na cozinha que chef workaholic curte tempo com filhos gêmeos
Flávia G Pinho
Colaboração para Nossa
13/08/2023 04h00
Em São Paulo, o chef Marcos Livi, 50 anos, comanda cinco restaurantes sempre cheios: as duas unidades da pizzaria Napoli Centrale, o Brique e os bares Veríssimo e Quintana. Em São Francisco de Paula, na Serra Gaúcha, é o proprietário do hotel Parador Hampel, onde funciona o restaurante Ana Terra e, aos domingos, acontece o evento de churrasco A Ferro e Fogo. Tem mais. É ele que assina o menu do Vistta, hospedagem com experiência gastronômica em Praia Grande, sul de Santa Catarina.
Livi parece ter rodinhas nos pés. Vive em trânsito, pulando de um trabalho para outro, dirigindo o carro ou correndo para pegar aviões — ainda assim, consegue ter os filhos gêmeos Frederico e Guilherme, de 14 anos, sempre ao redor.
Desde pequenos, os garotos não desgrudam do pai, não importa que ele esteja na cozinha de um de seus bares, dando palestras em congressos ou pilotando uma churrasqueira para um público de centena de pessoas. "Como meu pai sempre precisou trabalhar muito, ir junto aos eventos e restaurantes sempre foi um jeito de ficar mais perto dele", confessa Gui, que já conquistou o posto de assistente oficial do pai.
O Fred é skatista, apaixonado por aves, mas foge da cozinha. Já o Gui participou de vários eventos comigo e faz uma mise en place impecável. Quando tinha 11 anos, quis trabalhar na Churrascada e não queriam deixar que ele usasse a faca. Ele respondeu 'se é para ser Nutella, prefiro ir embora'", conta Livi, sem disfarçar o orgulho.
Neste Dia dos Pais, como já aconteceu tantas vezes, os três não estarão na mesma cidade. Os gêmeos, que moram em São Paulo com a mãe, estão em plena adolescência e têm compromissos sociais dos quais não abrem mão. Livi vai estar no Rio Grande do Sul, comandando um evento especial de churrasco em seu hotel. Sorte que nenhum deles liga, porque a vida sempre foi assim.
"Quem é cozinheiro profissional trabalha nos momentos de lazer dos outros e vive nos intervalos das datas comemorativas. Eles cresceram dessa forma, sem rigidez em relação a datas, por causa da minha vida nômade e da maneira como eu também fui criado."
Memórias do sul
Filho de colonos italianos, Livi nasceu e cresceu em São Francisco de Paula, cidadezinha de 21 mil habitantes na porção menos famosa da Serra Gaúcha. Seu Nelson trabalhava como motorista e dona Laura, como costureira, quando decidiram empreender — em 1982, compraram um trailer e inauguraram a hamburgueria Xis da Dona Laura, que virou ponto turístico na cidade.
"Até hoje, ninguém vai a São Chico sem conhecer. Eles vendem uns 1000 lanches por fim de semana", conta Livi, que foi o primeiro funcionário contratado pelo foodtruck, com direito a carteira assinada.
Vem daquele tempo a rotina de trabalhar sem folgas nos fins de semana e feriados. "No domingo, eu almoçava e corria para o Xis. Na ceia de Natal, comia e corria para o Xis. Sempre foi desse jeito."
As refeições podem ter sido corridas, mas Livi lembra delas com uma baita saudade. Seu Nelson garantia o churrasco, enquanto Dona Laura cuidava dos acompanhamentos de praxe: macarrão, arroz e uma salada de batatas com maionese que, até hoje, Livi prepara quando quer lembrar de casa.
Todo domingo, sinto saudade daqueles almoços. Acho que foi por isso que criei o A Ferro e Fogo, para garantir o churrasco dos domingos."
Convivência na cozinha
Ao contrário do pai, Fred e Gui cresceram em uma metrópole, com acesso a comidas do mundo inteiro. Amam pizza, hambúrguer, receitas árabes e sushi e, seja nos restaurantes do pai ou em outros estabelecimentos da capital, gostam de variar os pedidos.
"Nas praias do Nordeste, bater o martelinho nas caranguejadas era uma brincadeira que levava horas", diz Livi.
O mesmo vale quando os três estão em casa, ou viajando de folga, e o pai resolve cozinhar. Nas últimas férias escolares, durante o inverno gelado de São Chico, o ponto alto foi a sopa de letrinhas que, na avaliação do chef, ficou "absurda" de tão gostosa.
Sobre o refogado de cebola, alho e tomate, Livi cozinhou linguiça campeira, batatas e cenouras da horta defumadas, tudo dentro de um caldo de carne caseiro bem perfumado. Quando o caldo já estava apurado, cheio de sabor, entrou o macarrão para finalizar. Só que nem sempre é assim — baixa gastronomia também tem vez.
Já fiz aquele macarrão vergonhoso, com os fios do espaguete espetados na salsicha para cozinhar tudo junto, sabe?"
Pratos de massa, diz Livi, são os prediletos. "Se eu deixar, os dois comem macarrão todo dia", ele conta. Quando há tempo de sobra, a brincadeira é preparar a massa do zero, misturando ovos e farinha de trigo.
Se for uma refeição mais apressada, em noites de muita fome e preguiça, o espaguete industrializado resolve a questão em minutos — o molho de tomates é caseiro e também fica pronto rapidinho.
Mas com tantas comidas diferentes no repertório, veja só, os gêmeos cresceram sem uma receita do coração. Garantem que não existe um prato, nem mesmo um ingrediente, que represente a figura paterna ou ajude a matar a saudade quando estão separados.
Quando lembro do meu pai, não penso em um prato, mas no fogo", confessa Guilherme.
E não é só por causa do churrasco, ele entrega. "Ele não costuma ficar bravo, mas tem um temperamento explosivo", entrega, sem disfarçar o riso.
Galeto com polenta
Neste ponto da entrevista, diante dos garotos, Livi fica pensativo, quase melancólico. Pensa na forte ligação que mantém até hoje com as receitas da mãe e do pai, tanto que elegeu a salada de batatas com maionese, aquela que Dona Laura preparava para acompanhar os churrascos de domingo, como uma de suas preferidas.
Mas admite não ter construído, com os filhos, o mesmo tipo de memória afetiva relacionada à comida. Os meninos cresceram entre tantas referências que não conseguem eleger um prato que simbolize o amor que une os três — o galeto al primo canto, acompanhado de polenta frita, também foi escolha do próprio Livi, que gosta de levar os garotos às galeterias gaúchas quando estão de férias.
"Que cozinheiro sou eu, que não precisa preparar um único prato que meus filhos me peçam para fazer?", ele se questiona.
Hoje, o presente que gostaria de ganhar no Dia dos Pais é mais tempo com eles. Mas, no futuro, espero que eles lembrem e queiram comer um dos meus pratos."