Massas, molhos, almôndegas: mafioso pop star 'delatou' as receitas da máfia
Carlos Eduardo Oliveira
Colaboração para Nossa
17/08/2023 04h00
Máfia e comida sempre couberam na mesma frase. Não só mafiosos sempre gostaram de frequentar bons restaurantes - locais, não raro, de ótima comida - como, tal qual mostra Hollywood, a boa mesa sempre protagonizou casamento com importantes decisões tomadas por wiseguys (como os mesmos se tratam).
Regularmente, mafiosos de vários escalões abriam restaurantes e afins, quer para lavar dinheiro ou apenas para servir de ponto de encontro da gangue. Ou ambos.
Por vezes, esse casamento terminou em divórcios pra lá de litigiosos, dada a longa lista de chefões "apagados" literalmente à mesa: Joe "The Boss" Masseria, "Crazy" Joe Gallo, "Dutch" Schultz, Carmine Galante (o da icônica foto já fuzilado, com o charuto ainda na boca - aceso!), o capo Paul Castellano (na porta da famosa churrascaria nova-iorquina Sparks). E muitos outros.
Mas ao menos um deles, do alto clero, não só viveu para contar a história como virou chef (de cozinha), operou restaurantes (legítimos) e até alcançou status de celebridade, ao lançar o primeiro e único livro de culinária da lavra de um autêntico ex-mafioso.
Seu nome: Henry Hill (1943-2012), imortalizado na telona por Ray Liotta em "Os Bons Companheiros" (1990), clássico do diretor Martin Scorcese. Filme no qual, aliás, um tal Billy Batts é executado a pancadas em seu restaurante - do jeito que o próprio Hill descreveu aos roteiristas a cena que presenciou in loco.
No filme, como na vida real, Hill é indiciado pelo FBI por tráfico de drogas - curiosamente, algo então proibido em círculos de mademen (integrantes "batizados" na máfia).
Entre amargar décadas no xadrez ou dedurar seus pares num acordo, opta pela segunda, o que trai o código de honra das organizações (omertá) e instala em suas costas um alvo do tamanho do Everest. Sem saída, adere ao sistema de proteção a testemunhas, até ser expulso anos depois por "recaídas" e irregularidades diversas.
"A máfia nunca esquece", prega a lei das ruas. Porém, o best seller "Wiseguy: Life in a Mafia Family" ("Mafioso: Vida em uma Família da Máfia" - no caso, o clã criminoso Lucchese), no qual Hill foi fonte do autor Nicholas Pileggi, "alivia sua barra" - o livro foi base para o longa de Scorcese.
E Hill virou o gangster favorito da mídia de Tio Sam. É histórica, por exemplo, sua entrevista ao apresentador Howard Stern.
Ovelha cozida e procurador glutão
Ao longo da criminosa trajetória que remonta ao século 19, a máfia italiana por excelência - a Cosa Nostra (a pioneira, da Sicília), a Camorra (napolitana) e a hoje poderosa NDrangheta, da Calábria -, como associação criminosa genuinamente oriundi, virou fenômeno global prezando laços umbilicais com suas tradições. Como bem o mostram gemas do quilate do próprio "Os Bons Companheiros" e do monumental "O Poderoso Chefão", entre outras.
Uma das lendas em torno da equação máfia versus culinária refere-se à receita de pecora bollita - ovelha cozida. Indo mais a fundo: uma lei não escrita originária da época de Benito Mussolini dizia que ninguém poderia ser preso na Itália se estivesse comendo no momento da abordagem.
Nos primórdios da Cosa Nostra, seus integrantes teriam então usado e abusado disso a seu favor: sabendo de antemão que poderiam ser presos em tal e tal data, organizavam longas e faustosas refeições, cujo gran finale era sempre a ovelha cozida, preparo que demanda horas, por vezes mais de um dia - fazendo os carabinieri (policiais) desistirem das ações.
Pecora bollita seria, então, uma receita genuinamente mafiosa.
Já nos anos 1980, entrou igualmente para os anais a leitura gastronômica que o procurador italiano Ignazio De Francisci, implacável perseguidor da Cosa Nostra, fez da gangue siciliana. Seríssimo, De Francisci entrou em cena após seus antecessores (Giovanni Falcone e Paolo Borsellino) terem sido literalmente dinamitados. E trancafiou centenas de chefões e subordinados.
Mas ficava de queixo caído - e com água na boca - durante suas visitas aos presídios, ante os irresistíveis aromas e sabores dos mafiosos cozinhando atrás das grades (igualzinho à lendária sequência de "Os Bons Companheiros").
Verificou também que, de ingredientes a acessórios, incluindo freezers e geladeiras, nada lhes faltava. Carnes, peixes, nada. Fascinado, o homem da lei chegou a escrever sobre essas receitas em jornais e revistas. Pensou seriamente em publicar um livro. No que foi desaconselhado por seus pares paladinos.
"Cozinhando na cadeia"
Editado em 2002, o título completo do receituário de Henry Hill é "The Wiseguy Cookbook - My Favorite Recipes From My Life as a Goodfella to Cooking on the Run" (algo como "O Livro do Mafioso - Minhas Receitas Favoritas da Máfia para Cozinhar em Fuga"), ainda hoje na Amazon.
Ao longo das 350 páginas divididas em dois tomos, o "autor" dá detalhes sobre sua vida em fuga (da polícia) e revela que a parte mais difícil da "vida louca" era ficar apartado de suas comidas italianas favoritas, de tempos em tempos.
Ensina também como cozinhar no xilindró e fora dela.
Denominada "Em Fuga", a segunda parte lista algumas receitas do filme, caso das almôndegas e do molho dominical da família.
De antepasto a massa para pizza, de pão a ossobuco e caponatas de berinjela, são dezenas de preparos, que Hill, de origem mezzo irlandesa, mezzo italiana, denomina "legitimamente sicilianas". Ainda hoje, resenhas indicam que quem tentou, relatou que são receitas fáceis. E bem boas.
Nos tempos de bandidagem, Hill pilotou o The Suite, no Queens Boulevard, em Nova York. Até tentou, dizia, fazer da casa um negócio legitimo. Não conseguiu, já que a frequência era a pior possível.
Com a página de seus problemas legais virada, foi chef de uma casa em Nebraska. Chegou a abrir em Connecticut seu próprio restaurante, de curtíssima existência, antes de pegar fogo (?). O nome no letreiro: Wiseguys.
Seu sunday gravy, molho para massas, chegou a ser vendido na internet. Em 2012, Hill, que declarava nunca ter matado ninguém, partiu, para ajustar contas com o Senhor. De complicações cardíacas.