Massas, molhos, almôndegas: mafioso pop star 'delatou' as receitas da máfia
Máfia e comida sempre couberam na mesma frase. Não só mafiosos sempre gostaram de frequentar bons restaurantes - locais, não raro, de ótima comida - como, tal qual mostra Hollywood, a boa mesa sempre protagonizou casamento com importantes decisões tomadas por wiseguys (como os mesmos se tratam).
Regularmente, mafiosos de vários escalões abriam restaurantes e afins, quer para lavar dinheiro ou apenas para servir de ponto de encontro da gangue. Ou ambos.
Por vezes, esse casamento terminou em divórcios pra lá de litigiosos, dada a longa lista de chefões "apagados" literalmente à mesa: Joe "The Boss" Masseria, "Crazy" Joe Gallo, "Dutch" Schultz, Carmine Galante (o da icônica foto já fuzilado, com o charuto ainda na boca - aceso!), o capo Paul Castellano (na porta da famosa churrascaria nova-iorquina Sparks). E muitos outros.
Mas ao menos um deles, do alto clero, não só viveu para contar a história como virou chef (de cozinha), operou restaurantes (legítimos) e até alcançou status de celebridade, ao lançar o primeiro e único livro de culinária da lavra de um autêntico ex-mafioso.
Seu nome: Henry Hill (1943-2012), imortalizado na telona por Ray Liotta em "Os Bons Companheiros" (1990), clássico do diretor Martin Scorcese. Filme no qual, aliás, um tal Billy Batts é executado a pancadas em seu restaurante - do jeito que o próprio Hill descreveu aos roteiristas a cena que presenciou in loco.
No filme, como na vida real, Hill é indiciado pelo FBI por tráfico de drogas - curiosamente, algo então proibido em círculos de mademen (integrantes "batizados" na máfia).
Entre amargar décadas no xadrez ou dedurar seus pares num acordo, opta pela segunda, o que trai o código de honra das organizações (omertá) e instala em suas costas um alvo do tamanho do Everest. Sem saída, adere ao sistema de proteção a testemunhas, até ser expulso anos depois por "recaídas" e irregularidades diversas.
"A máfia nunca esquece", prega a lei das ruas. Porém, o best seller "Wiseguy: Life in a Mafia Family" ("Mafioso: Vida em uma Família da Máfia" - no caso, o clã criminoso Lucchese), no qual Hill foi fonte do autor Nicholas Pileggi, "alivia sua barra" - o livro foi base para o longa de Scorcese.
E Hill virou o gangster favorito da mídia de Tio Sam. É histórica, por exemplo, sua entrevista ao apresentador Howard Stern.
Ovelha cozida e procurador glutão
Ao longo da criminosa trajetória que remonta ao século 19, a máfia italiana por excelência - a Cosa Nostra (a pioneira, da Sicília), a Camorra (napolitana) e a hoje poderosa NDrangheta, da Calábria -, como associação criminosa genuinamente oriundi, virou fenômeno global prezando laços umbilicais com suas tradições. Como bem o mostram gemas do quilate do próprio "Os Bons Companheiros" e do monumental "O Poderoso Chefão", entre outras.
Uma das lendas em torno da equação máfia versus culinária refere-se à receita de pecora bollita - ovelha cozida. Indo mais a fundo: uma lei não escrita originária da época de Benito Mussolini dizia que ninguém poderia ser preso na Itália se estivesse comendo no momento da abordagem.
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Quero receberNos primórdios da Cosa Nostra, seus integrantes teriam então usado e abusado disso a seu favor: sabendo de antemão que poderiam ser presos em tal e tal data, organizavam longas e faustosas refeições, cujo gran finale era sempre a ovelha cozida, preparo que demanda horas, por vezes mais de um dia - fazendo os carabinieri (policiais) desistirem das ações.
Pecora bollita seria, então, uma receita genuinamente mafiosa.
Já nos anos 1980, entrou igualmente para os anais a leitura gastronômica que o procurador italiano Ignazio De Francisci, implacável perseguidor da Cosa Nostra, fez da gangue siciliana. Seríssimo, De Francisci entrou em cena após seus antecessores (Giovanni Falcone e Paolo Borsellino) terem sido literalmente dinamitados. E trancafiou centenas de chefões e subordinados.
Mas ficava de queixo caído - e com água na boca - durante suas visitas aos presídios, ante os irresistíveis aromas e sabores dos mafiosos cozinhando atrás das grades (igualzinho à lendária sequência de "Os Bons Companheiros").
Verificou também que, de ingredientes a acessórios, incluindo freezers e geladeiras, nada lhes faltava. Carnes, peixes, nada. Fascinado, o homem da lei chegou a escrever sobre essas receitas em jornais e revistas. Pensou seriamente em publicar um livro. No que foi desaconselhado por seus pares paladinos.
"Cozinhando na cadeia"
Editado em 2002, o título completo do receituário de Henry Hill é "The Wiseguy Cookbook - My Favorite Recipes From My Life as a Goodfella to Cooking on the Run" (algo como "O Livro do Mafioso - Minhas Receitas Favoritas da Máfia para Cozinhar em Fuga"), ainda hoje na Amazon.
Ao longo das 350 páginas divididas em dois tomos, o "autor" dá detalhes sobre sua vida em fuga (da polícia) e revela que a parte mais difícil da "vida louca" era ficar apartado de suas comidas italianas favoritas, de tempos em tempos.
Ensina também como cozinhar no xilindró e fora dela.
Denominada "Em Fuga", a segunda parte lista algumas receitas do filme, caso das almôndegas e do molho dominical da família.
De antepasto a massa para pizza, de pão a ossobuco e caponatas de berinjela, são dezenas de preparos, que Hill, de origem mezzo irlandesa, mezzo italiana, denomina "legitimamente sicilianas". Ainda hoje, resenhas indicam que quem tentou, relatou que são receitas fáceis. E bem boas.
Nos tempos de bandidagem, Hill pilotou o The Suite, no Queens Boulevard, em Nova York. Até tentou, dizia, fazer da casa um negócio legitimo. Não conseguiu, já que a frequência era a pior possível.
Com a página de seus problemas legais virada, foi chef de uma casa em Nebraska. Chegou a abrir em Connecticut seu próprio restaurante, de curtíssima existência, antes de pegar fogo (?). O nome no letreiro: Wiseguys.
Seu sunday gravy, molho para massas, chegou a ser vendido na internet. Em 2012, Hill, que declarava nunca ter matado ninguém, partiu, para ajustar contas com o Senhor. De complicações cardíacas.
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