Sopa de cebola reina da França à noite paulistana e até cura a ressaca
Carlos Eduardo Oliveira
Colaboração para Nossa
20/08/2023 04h00
Nos anos 1970 São Paulo distava anos-luz da Babel gastronômica que é hoje. Sair para jantar tarde da noite era verbo quase inconjugável. Opções escassas, carência total de lugares abertos. Mesmo em grandes capitais, serviços de alimentação 24 horas ainda eram ficção científica.
Eis que na beirada da zona oeste, no então recém inaugurado entreposto hortifrúti-cerealista da cidade, surge um maná com o condão de unificar nobres e plebeus, trabalhadores braçais, classe media e madames dos Jardins: em comum, a romaria noturna ao graal que mitificou-se no tempo como "a sopa de cebola do Ceasa".
Na época, era programão, hype a não perder. Combustível de boêmios retornando de festanças. Não habituês - hordas afluíam todas as noites - tinham que ir ao menos uma vez.
Ao longo das décadas, problemas de política interna fizeram a sopa entrar e sair de cena, com igual número de tentativas de revivê-la. Hoje ela segue na ribalta, através de festival anual de inverno promovido pela atual Ceagesp. E na receita original, garantem os organizadores.
Histórica e anti-ressaca
A sopa de cebola é um clássico francês absoluto. É um preparo ancestral que faz parte da história da alimentação francesa, ensina Erick Jacquin.
Em boa parte da Europa, é conhecida como french onion soup ("sopa de cebola francesa"), tamanha a reverência ante o tesouro gaulês. Segundo historiadores, já era (muito) conhecida de gregos e romanos. Na França, atribui-se sua "invenção" (em 1651) ao cozinheiro François Pierre La Varenne, tido como o artificie da moderna cozinha francesa - e pioneiro no registro escrito da receita.
Há outras teorias. Uma delas dá conta da autoria a Stanislas Leszczynski, rei da Polônia e Grão-Duque da Lituânia (mais tarde, na França, Duque de Lorraine), que a experimentou em uma pequena hospedaria camponesa na região de Champanhe. O nobre gostou tanto que decidiu aprender a receita. Depois, popularizou-a no seio da nobreza do Palácio de Versalhes.
Há ainda uma terceira (e inventiva) teoria, que atribui sua origem a ninguém menos que o rei Luís 15 de França, o "Bem-Amado" (nada a ver com a antiga novela global).
Certa ocasião, tarde da noite, em seu chalé de caça, no campo, bateu-lhe a fome. Mas o rei só teria achado três ingredientes à mão: cebolas, manteiga e champanhe. Uma coisa levou à outra, e o "Bem-Amado" não só criou a sopa, como levou-a para Versalhes.
"O fato incontestável é que a origem da sopa de cebola é como refeição das classes mais pobres", lembra Jacquin.
"Isso tem a ver com a abundância de cebola na França, sempre foi muito fácil plantar, cultivar e colher cebola no país. Foi só muito mais tarde, a partir do no período da corte do rei Luís 15, que a sopa mudou um pouco, ficou mais chique. E passou a ser consumida pelos ricos e pela nobreza".
O chef recorda sua relação pessoal com a iguaria, em festas e ocasiões sociais.
Lembro principalmente de casamentos de quando era adolescente. Lá pelas três ou quatro da manhã, quando a festa caminhava para o fim, a sopa de cebola era servida. E ajudava a diminuir o álcool de quem tinha bebido além da conta.
Paixão paulistana
No cardápio do antigo restaurante do Ceasa, a sopa de cebola surgiu despretensiosamente por mãos anônimas circa 1965. Primeiro, para alimentar trabalhadores das obras de construção; na sequência, para alimentar funcionários, comerciantes e compradores de todas as latitudes do já inaugurado (em 1969) entreposto - centenas deles trabalhando dioturnamente.
No boca a boca pré-viral que se instalou, inúmeros clientes de fora começaram a surgir. Saborosa e, sempre se acreditou, revigorante, a receita não demorou a alçar fama na cidade, ajudada pelo fato de estar disponível noite/madrugada adentro, quando tudo mais na Paulicéia já fechara as portas.
Por essa época, além de clássico local para famílias, casais e grupos de amigos, degustar a já famosa "sopa de cebola do Ceasa" virou atração turística para não-paulistanos. É dito que, no auge da fama, eram servidas cerca de três mil sopas - por dia. E meados dos anos 1980,
Na tentativa de resgatar a tradição, parte da memória afetivo-culinária da cidade, em 2009, durante os festejos dos 40 anos da companhia, surgiu o Festival de Sopas Ceagesp. Com o grande sucesso e aprovação, o evento tornou-se anual. Atualmente, está na 15ª edição.
No recém inaugurado Ça Va Café Erick Jacquin, em São Paulo, o chef pratica sua interpretação da milenar receita - com alguns pulos-do-gato.
"Eu refogo a cebola muito devagar, sem pressa. Deixo ficar bem colorido. Depois, adiciono um pouco de farinha de trigo, apenas uma colher de café. E um pouco de vinho branco, para dar acidez. E um tantinho de água, não uso caldo de legumes nem de carne. Sirvo com o queijo e principalmente os croûtons em separado. O croûton é tradicional, mas se colocar antes, ele suga todo o caldo. Vira um patê", elucida o mestre.