Além de cachoeira de vinho, mundo viu onda de cerveja e explosão de uísque

No começo desta semana, uma cidade portuguesa viralizou com cenas que pareciam uma praga bíblica: um rio vermelho inundando as ruas da pequena Anadia, no distrito de Aveiro. Era vinho, resultado do colapso de dois depósitos da destilaria Levira.

A empresa informou que a bebida estava armazenada para o programa Destilação de Crise 2023, uma medida governamental para auxiliar o setor. Inflação, mudanças de hábitos de consumo e produção excessiva estão entre as causas do atual desequilíbrio do mercado de vinho europeu, o que levou países produtores, com apoio da União Europeia, a torrar uma dinheirama para "destruir" vinho - só a França anunciou que vai gastar cerca de 200 milhões de euros na empreitada.

Essa destruição, na verdade, significa transformar a bebida em outras coisas. Ao destilar o álcool do vinho, os produtores podem vendê-lo às indústrias de produtos de limpeza ou de cosméticos.

O acidente em Portugal não deixou vítimas. A empresa ainda está apurando o que o causou.

Apesar da situação inusitada, eventos do tipo não são inéditos. Em 2020, um tanque de fermentação de uma fábrica da Ambev em Juatuba, Minas Gerais, explodiu. Não houve feridos e também não aconteceu uma inundação de cerveja pelas ruas tão cinematográfica como a que ocorreu em Levira.

Já no passado mais distante, a história é outra. Houve desastres terríveis, que marcaram a grandes cidades e impuseram mudanças à indústria. Conheça alguns casos.

A inundação de cerveja em Londres, 1809

A Meux era uma das maiores cervejarias da Londres do começo do século 19. Em 1809, ela expandiu os negócios ao comprar a Horse Shoe. Sua especialidade era a porter, estilo de cerveja escura criado em Londres e que era, à época, o mais popular da cidade.

No dia 17 de outubro de 1809, um dos tonéis de madeira explodiu. A força do impacto causou uma reação em cadeia, estourando outros barris. Algo entre 580 mil e 1,4 milhão de litros de cerveja causaram uma inundação catastrófica.

Continua após a publicidade

A onda alcoólica chegou a 4 metros de altura, destruiu o galpão da cervejaria e duas casas nas adjacências, além de ter causado vários danos à favela que ficava na vizinhança. O acidente matou oito pessoas, sendo algumas crianças.

"Hannah Banfield, uma menina de cerca de quatro anos e meio, com a mãe e outra criança, tomavam chá no primeiro andar", noticiou o jornal "Morning Chronicle" em 20 de outubro. "As duas últimas foram levadas pela enchente. O cadáver de Hannah Banfield foi encontrado em meio às ruínas por volta das seis e meia."

Cinco vítimas estavam juntas quando morreram. Elas realizavam o velório de um menino de dois anos.

A Horse Shoe quase foi à falência, mas continuou produzindo até 1966. A consequência mais duradoura do desastre, para a indústria, foi a aposentadoria paulatina dos tanques de madeira.

O incêndio do uísque de Dublin, 1875

Incêndio em Dublin causado por uísque
Incêndio em Dublin causado por uísque Imagem: Illustrated London News
Continua após a publicidade

No começo da noite de 18 de junho de 1875, um incêndio, de causa desconhecida, teve início em um armazém na área de Liberties, em Dublin. Às 21h30, o calor fez com que os 5 mil barris de uísque no depósito começassem a explodir. Jatos de bebida atravessaram portas e janelas do edifício em chamas.

O fogo atingiu chiqueiros na vizinhança, e o guincho dos porcos foi um alarme efetivo para evacuar a população do local. Assim, ninguém morreu no incêndio.

Quer dizer, ninguém morreu pelo fogo, mas de fogo, com o perdão do trocadilho. As pessoas, vendo aquele rio de uísque correndo, trataram de encher quaisquer vasilhames que tivessem por perto com a bebida. Acontece que ela não estava pronta para consumo. O uísque ainda não tinha sido diluído em água, processo que reduz seu teor alcoólico para os cerca de 40% habituais.

Resultado: dezenas de irlandeses completamente bêbados com uma bebida inacabada, cujo altíssimo teor alcoólico era um veneno. "Afirma-se que bonés, vasilhas e outros recipientes eram muito necessários para recolher a bebida que fluía do local em chamas", dizia o jornal "Irish Times" em 21 de junho. "Por mais nojento que possa parecer, alguns sujeitos foram observados tirando as botas e usando-as como copos para beber."

Seria cômico, não fosse trágico. Vinte e quatro pessoas acabaram no hospital, e 13 morreram intoxicadas.

A grande inundação de melaço de Boston, 1919

Inundação de melaço em Boston
Inundação de melaço em Boston Imagem: BPL
Continua após a publicidade

Melaço é um líquido viscoso e escuro, resíduo da cristalização do açúcar. É um produto de uso bastante diversificado na cozinha e na indústria, de receitas de bolos à fabricação de argamassa. Além disso, está na produção de álcool, tanto o industrial como aquele à disposição no bar - rum é, basicamente, obtido a partir da destilação do melaço da cana-de-açúcar.

Em 1919, a empresa Purity Distilling, fabricante de álcool industrial, armazenava em um tanque o melaço que descarregava dos navios que chegavam ao Porto de Boston. Em 15 de janeiro, após dias seguidos de temperaturas gélidas até para o inverno de Massachussets, os termômetros apontavam uma manhã mais carinhosa para os friorentos: 4ºC.

Segundo o historiador Stephen Puleo em "Dark Tide" ("maré negra", sem edição brasileira), livro sobre a tragédia, o aumento de temperatura causou dilatação térmica no melaço armazenado em um tanque de 8,7 milhões de litros. Com uma nova carga, que chegara na véspera, o compartimento, de 15 metros de altura e 27 de diâmetro, não aguentou e explodiu pouco após meio-dia e meia.

O melaço varreu o North End, hoje um charmoso bairro de Boston, cheio de edifícios históricos. Testemunhas disseram ter ouvido um estrondo assombroso e sentido o chão tremer. O colapso gerou uma onda que atingiu 8 metros de altura e 56 km/h. Os painéis de aço do tanque foram parar nas vigas de um elevado na vizinhança.

"Um mar de mais de 1 milhão de galões de melaço, liberados pela repentina explosão e o colapso de um tanque gigante de ferro, provocou uma onda de morte e destruição em North End", dizia a primeira página do "Boston Globe" no dia seguinte.

Após o tsunami escuro, o líquido liberado ficou ainda mais viscoso por causa do frio, prendendo as pessoas como moscas no mel. A explosão deixou 21 mortos e cerca de 150 feridos. As pessoas (e muitos cavalos) morreram soterradas pelos escombros dos edifícios destruídos ou engolidas pelo melaço.

Continua após a publicidade

O cenário de destruição era tão viscoso e grudento que dificultou o resgate. Alguns corpos ficaram tanto tempo sob o melaço que acabaram vitrificados, dificultando o reconhecimento. Outros foram encontrados somente quatro meses depois.

A limpeza durou semanas, e o próprio deslocamento de voluntários, bombeiros e todas as centenas de pessoas envolvidas deixou assentos do metrô, telefones públicos e corrimãos melados por toda a cidade. O bizarro acidente marcou a história de Boston. Por décadas, moradores diziam sentir cheiro de melaço nos dias quentes de verão.

Após o desastre, houve mudanças na legislação americana. A construção de tanques do tipo passou a exigir a supervisão de arquitetos e engenheiros.

Deixe seu comentário

Só para assinantes