Como é a 'fazenda' de pérolas que abastece famílias reais do Oriente Médio
Esqueça os arranha-céus, os carrões, restaurantes estrelados e hotéis de luxo gerados pelos "petrodólares" nas últimas décadas. Até menos de cem anos atrás, a grande força motora da economia dos Emirados Árabes (e de tantos outros países do Golfo Pérsico) vinha das águas: eram as pérolas que ditavam as grandes riquezas regionais.
A própria configuração urbana atual da região foi diretamente determinada pela "pesca" de pérolas; uma tradição literalmente milenar, de épocas em que a mina de ouro local estava no mar e não na terra.
Ras Al Khaimah, conhecido como "o emirado da natureza" e vizinho a Dubai, foi um dos principais destinos-referência na extração e comércio de pérolas. E hoje fica bem ali a única fazenda de cultivo delas na região.
Antigamente, as pérolas eram única e exclusivamente um material orgânico, produzido naturalmente através da reação causada por corpos estranhos a ostras e mexilhões.
Com um adendo: naquela época, somente pérolas muito claras tinham valor regional e internacionalmente. As pérolas negras, então, significavam azar — uma crença que só mudou quando Coco Chanel começou a utilizá-las.
Negócio arriscado
Por séculos a fio, essas preciosidades eram manualmente coletadas, uma a uma, em um trabalho extenuante e extremamente perigoso — muitos trabalhadores morreram nesse negócio.
Os pearl divers (mergulhadores de pérolas), como eram chamados na época, vestiam apenas uma roupa leve de algodão e um grampo/clipe nasal feito de casco de tartaruga ou osso de ovelha e mergulhavam o dia todo, por meses, atrás de ostras.
Em um sistema primitivo, que envolvia ainda o arremesso ao fundo do mar de uma pedra amarrada a uma corda e a confiança total nos companheiros que permaneciam no barco, eles mergulhavam, sem qualquer ajuda artificial, em profundidades impressionantes. Ali permaneciam por até dois minutos para voltar à superfície com uma cestinha com o máximo possível de ostras, coletadas uma a uma.
Depositavam as cestas no barco, recuperavam o fôlego e mergulhavam novamente atrás de mais ostras. Faziam isso do amanhecer ao anoitecer, todos os dias dos meses da "temporada de pesca", contando com a sorte: às vezes era necessário "pescar" várias centenas e até milhares de ostras para conseguir uma única pérola.
Muitas cidades surgiram justamente em torno dessa atividade no golfo. Naquela época, os negócios por ali dependiam basicamente das pérolas, chegando a ter a maioria da população masculina trabalhando nisso — e até atraindo pescadores de outras áreas.
A economia local resistiu nesses moldes e termos por centenas de anos. Mas, no século passado, com o advento das minas de petróleo, o negócio das pérolas ficou insustentável. Afinal, um funcionário de refinaria podia ganhar mais de três vezes o que um mergulhador ganhava — e sem colocar sua vida em risco extremo. Pouco a pouco, a "pesca" de pérolas foi arrefecendo até que surgisse a reviravolta do cultivo de pérolas.
Hoje, o comércio de pérolas naturais constitui menos de 5% do comércio global de pérolas. As fazendas de pérolas cultivadas dominam o setor, pois tornaram a produção muito mais previsível, sustentável e barata.
Histórias de pescador
Muhammad bin Abdullah foi um dos últimos mergulhadores de pérolas de Ras Al Khaimah, já no século passado. Seu neto, Abdulla Rashed Al Suwaidi, apaixonado pelo avô desde pequeno, tinha o sonho de também ser mergulhador de pérolas. Mas a contemporaneidade o acabou levando por outros rumos, da faculdade de Ciências Políticas ao trabalho diplomático junto ao governo emirate.
Foi só em 2005 que Abdulla fundou uma fazenda de criação de ostras perlíferas que idealizou justamente para preservar o legado de sua família e a tradição histórica de Ras Al Khaimah nessa indústria.
Meu avô ligava com muita maestria a vida do fundo do mar à terra. O mergulho com pérolas moldou sua personalidade digna e aventureira"
Primeira fazenda de pérolas cultivadas da região, a Suwaidi Pearls é hoje a única da região a fornecer pérolas de origem local para joalheiros em todo o mundo. A fazenda é totalmente ecológica, sem maquinário para a colheita de ostras e alimentada por painéis solares.
Cultivei as ostras da forma convencional que meu avô me ensinou e consegui milhões delas"
Após ver um barco de mergulho de pérolas dentro de um museu, o empresário decidiu não deixar essa cultura milenar restrita a museus, documentários e livros de história.
Ele apostou na restauração de barcos de mergulho antigos, começou a usá-los para suas atividades com as pérolas e então teve a ideia de convidar visitantes para viajarem nestes barcos, contando um pouco da história do avô e seus colegas no arriscado negócio da pesca de ostras.
Hoje, as visitas turísticas à Suwaidi Pearls vão de vento em popa e há expectativa de crescerem ainda mais nos próximos meses e anos, com o desenvolvimento do turismo em geral em Ras Al Khaimah.
Eu sei muito bem que os turistas são capazes de mudar seu destino em busca de projetos que carregam uma dimensão cultural, ambiental e biológica"
Pescador de pérolas por um dia
Localizada na lagoa de Al Rams, no sopé da extensa e impressionante cordilheira Al Hajar, a Suwaidi Pearls oferece hoje uma das experiências turísticas mais procuradas em Ras Al Khaimah, atraindo inclusive visitantes da vizinha Dubai.
O passeio pela fazenda começa em uma réplica dos barcos tradicionais dos antigos pescadores de pérolas até chegar à fazenda flutuante em meio à lagoa — com direito a vista das montanhas, manguezais, flamingos, garças, águias e eventualmente até dromedários.
A visita guiada acontece em pequenos grupos, explicando bem didaticamente, através de objetos, utensílios, ilustrações e simulações, a história das pérolas no Golfo Pérsico, a evolução desta indústria e como ocorre o processo de cultivo e colheita hoje em dia.
A lagoa se beneficia das águas das chuvas sobre as montanhas Hajar, que enchem a água do mar de oxigênio e criam — junto aos minerais abundantes no golfo pérsico — um ambiente perfeito para as pérolas cultivadas se desenvolverem.
Inserir de uma conta redonda feita da concha de madrepérola no tecido da ostra faz parte do processo de semeadura. Isso é feito para que uma camada de nácar cresça ao seu redor, formando uma pérola ao longo do tempo.
Ao final da visita, o guia busca um voluntário do grupo de visitantes para abrir uma ostra e ver se tem a sorte de encontrar uma pérola lá dentro — e geralmente há, é claro.
As pérolas colhidas na fazenda da Suwaidi Pearls são usadas principalmente em coleções de grandes joalherias internacionais, como Van Cleef & Arpels. Famílias reais do Oriente Médio também costumam ser clientes fiéis da empresa.
A sede tem também uma loja que abriga algumas peças desenvolvidas com as pérolas cultivadas na fazenda e que podem ser compradas ali mesmo. Também é possível encomendar joias personalizadas com as pérolas locais.
O passeio completo dura cerca de 2h30, com água, café, sucos e chá incluídos. Há ainda a oferta de pacotes mais completos, que podem incluir um almoço simples caseiro, passeios de caiaque e até um mergulho guiado para tentar "pescar" uma pérola.
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